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Governo federal quer a energia da Amazônia

Lúcio Flávio Pinto - Março 2014
 

Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma mentiram sobre a hidrelétrica de Belo Monte. Essa mentira não vem só. Ela é acompanhada por várias outras, desencadeadas - num intervalo de 13 anos - pelo mesmo detonador: sucessivas - e, às vezes, graves e súbitas - interrupções no fornecimento de energia, os temidos "apagões". São acidentes, provocados pela natureza (sobretudo, os inefáveis raios, que caem no Brasil como em nenhum outro país, mas são multiplicados pela imaginação dos interessados nos seus supostos efeitos) ou pelo homem. Do erro, previsível e, por isso, passível de prevenção, resulta outro erro. Provavelmente mais grave.

Áreas e populações cada vez maiores do país estão ameaçadas de ficar sem energia. Imediatamente é apresentada a solução: mais hidrelétricas para aproveitar o potencial da Amazônia, capaz de aumentar em 50% o parque energético nacional em atividade. Duas novas usinas já entraram em operação no rio Madeira, em Rondônia. Jirau e Santo Antônio poderão oferecer ao Sul e Sudeste, onde está o maior consumo, quase tanta energia quanto a que Tucuruí, no rio Tocantins, estava transferindo quando houve o apagão, no dia 4 de fevereiro, deixando no escuro populações (talvez 6 milhões de pessoas, na versão oficial subestimada) de 13 Estados e do Distrito Federal.

O maior reforço seria o de Belo Monte. No pique do inverno, como agora, a usina do rio Xingu poderia transferir um volume de energia superior em mais de 70% à potência de Tucuruí, Jirau e Santo Antônio somadas. No verão, porém, a geração pode ficar em zero durante três ou quatro meses.

A vazão do Xingu se reduz 30 vezes entre o auge da cheia e o extremo da vazante. Não haverá água suficiente para acionar as 18 turbinas gigantescas, nem mesmo uma delas, no máximo da estiagem. O projeto original do aproveitamento energético do Xingu previa mais cinco barragens rio acima. Elas produziriam mais energia e reteriam mais água para a maior delas, Belo Monte. O problema é que a área de inundação seria cinco vezes maior do que a de Tucuruí e quase quatro vezes a de Sobradinho, que têm os dois maiores reservatórios brasileiros.

A reação, interna e internacional, foi tão forte que o governo federal voltou atrás. Justamente em 2001, ano do maior apagão, ao qual foi atribuída boa parte da responsabilidade pela derrota do PSDB na eleição do ano seguinte para a presidência da república. Belo Monte passou a ser o primeiro empreendimento elétrico declarado de interesse estratégico para o país.

No dia 17 de setembro de 2001, o presidente do Conselho Nacional de Política Energética da administração FHC, José Jorge de Vasconcelos, assinou o ato que reconhecia a hidrelétrica como estratégica "no planejamento da expansão da hidreletricidade até o ano 2010", último ano da vigência do plano decenal de energia.

Para que a obra pudesse ser realizada, o governo teria que desistir dos planos iniciais de construir as outras barragens, que provocariam o maior alagamento da história das hidrelétricas. O aproveitamento do Xingu ficaria restrito a Belo Monte. Mesmo nessa usina solitária, o reservatório teria o menor tamanho possível, cobrindo apenas o dobro da área que o rio inunda todos os anos. Seria quase como uma usina a fio d’água, com reserva turbinável apenas no inverno.

Logo os técnicos perceberam que esse esquema não poderia ser usado para uma hidrelétrica que deverá ser a maior do mundo em capacidade instalada. Decidiram criar um vertedouro à margem da calha natural do rio. A água seria desviada para formar esse lago interior através de canais de concreto ou de terra e represada, sendo vertida por um desnível de 90 metros até a casa de força principal, acionando as suas máquinas. É uma inovação em relação a todas as outras usinas, que segue outra originalidade: o vertedouro principal distante mais de 100 quilômetros da casa de máquinas.

Mesmo que esse arranjo funcione a contento, superando o ceticismo e a incredulidade de alguns críticos, nem assim estará assegurada a viabilidade do empreendimento.

As empresas vencedoras da licitação para a concessão logo perceberam que a equação não iria resultar em lucro. Deixaram o consórcio responsável pela geração, a Norte Energia, e foram ocupar suas posições tradicionais, como empreiteiras, no Consórcio Construtor de Belo Monte. Para preencher seus lugares, o governo colocou as empresas estatais do sistema Eletrobrás, incluindo a própria holding, e os fundos de pensão federais, à frente o Previ, do Banco do Brasil. A estatização de fato foi completada pelo compromisso que o BNDES assumiu de financiar 80% do investimento, mantido mesmo com a triplicação do orçamento.

Assim, a construção estaria garantida, mas não a operação. A Norte Energia funcionaria com prejuízo, que teria que ser reposto pelo governo, porque a energia firme (a média da disponibilidade pelo ano inteiro) continuaria menor do que 40% e abaixo do nivelamento comercial. Seria um sangramento pesado do tesouro nacional.

O apagão do dia 4 de fevereiro surgiu na hora certa para o governo diante desse impasse. Com o alarme nacional e o receio de novas interrupções, a presidente Dilma Rousseff mandou seus porta-vozes anunciarem que o governo vai continuar a construir todas as hidrelétricas projetadas para a Amazônia, mesmo que precise passar por cima dos críticos, dos ambientalistas e da própria lei, tornando a política energética um apêndice ditatorial na ordem democrática estabelecida no país. A conjuntura desfavorável não lhe permitiria alternativa. Ou, dito melhor: o governo prefere partir para cima dos rios amazônicos do que encarar as alternativas.

Em 2001 o apagão de energia coincidiu com ano eleitoral, tornando-se item importante no discurso dos candidatos. O fato foi soterrado pelas versões e a dimensão técnica pelo aproveitamento político. O PSDB, no governo, pagou caro. O PT, na oposição, faturou os dividendos. Lula se elegeu. FHC não fez o seu sucessor, que era José Serra.

O fenômeno se repete neste ano, mas é bem provável que as lições do passado sejam deixadas de lado mais uma vez. Nesse caso, o "apagão" ficará permanentemente na agenda política sem que, com isso, sejam adotadas providências para que não invada o cotidiano dos cidadãos. O aproveitamento de uns infernizará outros - a esmagadora maioria, aliás.

As falhas na linha de transmissão de energia entre Tocantins e Goiás levaram o blecaute a 13 Estados nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste (mais o Tocantins, artificialmente posto na Amazônia Legal) na tarde/noite do dia 4. Só dois dias depois o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) promoveu uma reunião, na sua estranha sede (na bela cidade litorânea do Rio de Janeiro), para apurar os motivos do apagão.

Ainda sem essa avaliação, o governo federal descartou de imediato a possibilidade de sobrecarga no sistema por causa da estiagem recorde, que secou vários reservatórios de usinas, e dos piques - também recordes - de consumo, em função do efeito desse verão rigoroso (mais aparelhos de ar-condicionado em atividade, entre outros fatores).

Na manhã do dia 5, o Palácio do Planalto convocou seus porta-vozes do setor para oferecer essa garantia ao cidadão (que é também eleitor): a produção de energia é suficiente para atender todo consumo - ainda que excepcionalmente alto - do país. O pano de fundo mudou antes da entrevista coletiva à imprensa, em Brasília. O discurso é que continuou o mesmo. Por isso, não convenceu os especialistas e os observadores mais rigorosos. Se não mente, o governo, pelo menos, omite a verdade. O que é pior.

Só há duas explicações para o acidente, admitindo-se as informações oficiais. Uma é conjuntural: defeito em alguma peça ou equipamento ao longo da linha de transmissão, que provocou os desligamentos, ativados pelo sistema de proteção, que age automaticamente. Outra é estrutural: se colapso houve, ainda que por acidente, a causa última (ou primeira) é um vácuo de investimentos para acompanhar o crescimento da demanda.

Os "barrageiros" e suas extensões traduzem esse gap como falta de aplicações em geração de energia. Pode ser nas térmicas, que custam mais caro, mas são usadas em emergências como a atual (a um custo adicional de 10 bilhões de reais, no ano passado). É claro que usinas térmicas (a óleo ou carvão) não são suficientes (além de mais caras, poluem muito mais). A solução seriam mais hidrelétricas. E onde elas podem ser construídas? Na Amazônia, óbvio.

Na região amazônica essas grandes obras causam grandes danos ambientais e sociais, mas quem irá se importar com isso se o preço da inação é a falta de energia? Ninguém se importará nem com o custo dessas enormes barragens, muito maior do que nas outras partes do Brasil.

O calor sufocante fará a diferença na avaliação. Mas mesmo sem esse componente os "barrageiros" já haviam retomado a ofensiva rumo à Amazônia. Agora eles têm a decisiva colaboração do governo. A presidente Dilma Roussef mandou dizer (e a revista Veja transmitiu o recado) que agora não irá mais se preocupar com os ambientalistas.

É preciso gerar muita energia para evitar o colapso nacional. Represas serão levantadas nos rios amazônicos e quem se opuser será atropelado pela força do poder central. Brasília presume que os brasileiros aflitos aplaudirão sua impetuosidade. Mesmo porque serão conduzidos para uma conclusão viciada.

O que fazer? Ou subsidiar pesadamente Belo Monte para que ela absorva seus inevitáveis prejuízos operacionais, ou cancelá-la. Mas sua construção está chegando à metade do cronograma físico-financeiro, de 30 bilhões de reais. Logo, é definitiva. O subsídio à hidrelétrica de Tucuruí, em 20 anos (1984/2004) custou quatro bilhões de dólares ao tesouro nacional (sem atualização). Por quanto sairá Belo Monte, que é maior?

Mentiras de lado, o governo prepara-se para assumir aquilo em que sempre pensou: fazer uma segunda barragem rio acima para estocar água suficiente para Belo Monte, Xingu abaixo. Para isso, será formado um reservatório muito maior. O esquema se repetirá no Tapajós, próximo alvo dessa ofensiva, e em outros sítios favoráveis. A Amazônia poderia acrescentar 50% à energia produzida atualmente.

Parece inevitável, se o país se submeter à estratégia dos construtores de barragens, as grandes empreiteiras, fontes de caixas um, dois e três da política nacional. Deixam-se de lado outras medidas de efeito semelhante ou melhor, como a conservação de energia, a repotenciação das velhas usinas, as alternativas tecnológicas e algo que a sofreguidão dos períodos de crise oculta: a fragilidade cada vez maior das extensas linhas de energia que cortam o território brasileiro, sujeitas a acidentes constantes - acidentais, mas tão previsíveis quanto "preveníveis", para usar a neologia verde-amarela.

Um detalhe talvez ajude o leitor a ter uma percepção mais prática do problema. No momento do acidente de ontem, a hidrelétrica de Tucuruí transmitia, sozinha, cinco mil MW de energia para dois (ou três) milhões de unidades consumidoras (seis milhões de habitantes, no conservador cálculo oficial), no rumo sul. Estava com quase dois terços do seu reservatório, o segundo maior lago artificial do Brasil, cheio de água. Ao Pará, onde a usina se localiza, só eram destinados 20% dessa energia, sem o pagamento do imposto, cobrado apenas no consumo.

A quem, pois, serve esse modelo?

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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006), Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007), Memória do cotidiano (2008) e A agressão (imprensa e violência na Amazônia) (2008).

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Fonte: Jornal Pessoal & Gramsci e o Brasil.

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