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Economia e política na era do turbocapitalismo

Alfredo Reichlin - Maio 2008
Tradução: Josimar Teixeira
 

1. Uma economia que arrasa as vidas

A razão pela qual o livro de Tremonti deve ser considerado com um pouco mais de seriedade é que representa o sinal de um problema político muito grande [1]. E cuja novidade, em substância, é a crise do modelo de desenvolvimento que as cúpulas do mundo ocidental (especialmente anglo-americano) impuseram ao mundo há mais de trinta anos: o chamado Washington consensus. Sabemos que se tratou de uma autêntica revolução (ainda que conservadora). Liquidou o compromisso socialdemocrata.

Assim, a discussão que me parece necessário abrir não se refere a Tremonti, mas a nós, ao novo cenário que se abre para a esquerda. E vou logo dizendo que a eterna preocupação de não nos confundirmos com o extremismo e com o estúpido antiamericanismo no global não pode mais inibir as forças progressistas de se reorganizarem de modo autônomo em escala européia, bem além dos limites da socialdemocracia. E de começar a cumprir a função cada vez mais necessária de pensar um novo modelo de desenvolvimento para um mundo que verdadeiramente está sob risco.

Aonde vai a Europa? Não confundiria a posição de Tremonti com o velho protecionismo à moda da Liga Norte. Há na sua posição a tentativa de reorganizar as forças européias de direita em bases diferentes do "pensamento único" livre-cambista destes anos, pondo-se também como alternativa ideal em relação àquilo que Tremonti considera a colonização da Europa por parte de forças e povos novos (a China), uma colonização favorecida pelo modo como a mundialização é dirigida pela oligarquia financeira anglo-americana, em conluio (?) nada menos do que com o defunto comunismo.

Aqui está toda a demagogia e o cinismo intelectual de Tremonti. Mas por que ele invoca a defesa das "raízes cristãs" européias? Por trás há o fato de que a América perde influência, e as religiões neste mundo sob risco são usadas cada vez mais como instrumentum regni. Soube dos colóquios no Vaticano do presidente francês Sarkosy. Não se falou das relações entre laicismo e religião. Os cardeais teriam sondado a possibilidade de reorganizar as forças européias de direita sobre novas bases ético-políticas.

A questão de que parto, pois, é a seguinte. Devemos considerar os problemas surgidos com a crise financeira essencialmente econômicos, de tal modo que, observados os prós e os contras da mundialização, no final as contas fecham? Penso que seria preciso começar a mudar o terreno da discussão. O tema é a nova relação entre a economia e a sociedade moderna. Parece-me que a mundialização - no seu nexo incindível com a revolução científica e, sobretudo, com os mecanismos da informação e do conhecimento, mas destituída, como está, de uma orientação política que não seja o unilateralismo americano - está provocando mudanças até há pouco impensáveis não só na antropologia humana e na relação entre homem e natureza, mas também no sentido de uma metamorfose do capitalismo.

Atenção. Não falo só da evidente tendência à financeirização. Falo das conseqüências dela sobre o modo de ser do capitalismo, entendendo-o como a civilização não só material, mas jurídica, intelectual e moral em que estamos mergulhados há pelo menos três ou quatro séculos. E não falo só do mercado, ou seja, daquele mecanismo de troca que existe há milênios em todas, ou quase todas, as sociedades humanas. O capitalismo, como sabemos, é outra coisa. Não é uma relação entre coisas. É a trama (de resto, outras não se vêem) de uma sociedade moderna regulada não pelo poder do soberano ou por uma moral divina qualquer, mas pela combinação de direitos e deveres, de liberdades individuais e de obrigações sociais. Falo, em suma, da civilização na qual estamos imersos e que afirmou sua hegemonia não com a violência ou a polícia, mas com a capacidade de associar o egoísmo do indivíduo e aquela outra dimensão insuprimível, que é o impulso até mesmo moral e cultural no sentido da igualdade. Smith e Marx: as duas faces que permitiram à Europa falar às elites de todo o mundo.

E chego assim ao cerne da questão. "É justamente este dualismo - escreve Paolo Prodi no Mulino, a propósito da relação entre economia e política - que ora foi posto em crise (tal como a própria democracia) por causa da tendência, por parte da economia, de englobar num novo monopólio do poder toda a vida do homem". Logo, será a vida inteira do homem que está em questão? Não é pouco.

Eis então a razão destes pontos de reflexão por parte de quem não é economista. Exatamente porque o capitalismo não é uma "coisa", fico muito surpreso com certos fatos, quaisquer que sejam os ritmos de desenvolvimento da China. Que conseqüências tem o fato de que a chamada financeirização ou o chamado "turbocapitalismo" romperam qualquer invólucro de tipo estatal e qualquer barreira capaz de desempenhar um controle público, de sorte que até os bancos centrais parecem observadores estupefatos? O mesmo Paolo Prodi fala como que de uma obviedade sobre o fato de que as grandes fraudes financeiras, que enchem as páginas dos jornais, "são apenas o sinal de um sistema constituído por uma enorme cadeia de furtos impunes ou quase legalizados". E lemos os livros de Guido Rossi sobre a destruição do direito.

É verdade que um problema análogo se colocou com o advento das multinacionais, as quais, no entanto, acabaram por sofrer uma certa regulação. Escreveram-se livros inteiros sobre o capitalismo dos gerentes. Mas, em seguida, até os gerentes foram "colonizados" pela finança: forçados a "criar valor", ou seja, a valorizar não a capacidade produtiva da empresa e seu desenvolvimento a médio prazo, mas prestar contas, dia após dia, do valor de Bolsa aos seus proprietários, isto é, aos fundos de investimento, por sua vez emanações dos bancos.

Não sei se nos damos conta do poder enorme que se constituiu através das grandes concentrações bancárias. Um poder - eis a novidade - que deriva cada vez menos da intermediação em favor dos investimentos de inúmeros poupadores (o que deveria ser o papel dos bancos). Na realidade, seus balanços tornam-se ilegíveis porque assistimos a uma enorme transferência dos riscos das instituições financeiras aos chamados "mercados".

Digo "chamados", porque, na verdade, trata-se na prática das famílias, as quais - estando cada vez menos protegidas pelo Estado social e pela cobertura das aposentadorias públicas e cada vez mais expostas a trabalhos precários e a outras exigências vitais, como a casa - são induzidas a adquirir ações, cotas, títulos de segunda linha, endividando-se até o pescoço. Um endividamento que, nos EUA, supera o do Estado e que, paradoxalmente, é financiado pela poupança dos chineses. Cria-se assim, substancialmente, um sistema que canaliza a poupança não para os investimentos produtivos, mas para o consumo. Mas um consumo que está exposto ao risco que deriva das mudanças do custo do dinheiro.

Será isso mesmo? Sei muito bem que a finança desempenhou e continua a desempenhar uma função crucial para o desenvolvimento. O fato para o qual gostaria de chamar a atenção é o papel do consumo. Pergunto-me se a razão pela qual a sociedade se transforma cada vez mais em sociedade de mercado não deriva justamente de um fato essencialmente histórico-político. O fato é que, estando as necessidades primárias já amplamente satisfeitas e sendo a mais-valia extraída da exploração do trabalho operário no velho sistema de fábrica, já transformado em "coisa demasiadamente mesquinha" (Marx), apresenta-se objetivamente a questão de uma relação diferente entre uma nova idéia do desenvolvimento humano e a economia.

Este é o grande desafio. Pretende-se descartar toda alternativa que pressuponha uma relação diferente entre dirigentes e dirigidos? Eis que então só resta transformar a sociedade em sociedade de mercado. Penso que daqui, talvez sobretudo daqui, surge a transformação do cidadão em consumidor. Porque só neste terreno mais amplo pode acontecer uma enorme extração de recursos que supera os limites de classe e se apóia numa gama muito ampla de necessidades humanas, as quais requerem novos mercados e são, pelo menos em parte, induzidas de modo artificioso pelas subculturas dominantes.

Em síntese, não basta o salário que subpaga a mercadoria-trabalho; é preciso criar, através do modo de viver, uma nova forma de dominação. De resto, só assim começamos a compreender por que a esquerda não sofreu apenas algumas derrotas, mas foi posta fora de combate. Mas aqui se abre (se não se trata só de fantasia minha) o grande capítulo sobre o que ocorre se o consumo se torna a coisa essencial que define a necessidade de identidade humana.

2. A economia do eterno presente

Concluímos a primeira parte com a pergunta sobre o que sucede se o consumo torna-se a coisa essencial que define a necessidade de identidade humana. Sucede que desaparece a necessidade de futuro. Tudo se resolve no eterno presente, no carpe diem de uma sociedade de mercado. Este é, de fato, o fim da história. Mas estejamos atentos, porque, com ele, também entra em questão o pressuposto histórico e ético-político do próprio mercado.

Não seja estranho que um velho comunista se pergunte o que acontece se entrar em questão o pressuposto moral e humano do mercado. Estou me perguntando aonde está indo o desenvolvimento humano. O mercador italiano do Renascimento representou aquele salto de civilização porque não especulava só sobre o desajuste entre oferta e procura, mas porque descobria mundos, pessoas, carecimentos, culturas, e triunfava graças à sua superioridade intelectual. E não por acaso com aquele lucro construía os palácios renascentistas e pagava a obra de Rafael e Michelangelo. Nos tempos de então, o comércio era liberdade, saída da Idade Média. E, mais tarde, não casualmente o liberismo nasceu com Adam Smith, que era um filósofo moral.

O mercado moderno, ou seja, a ruptura dos velhos vínculos corporativos, também era a afirmação da autonomia da pessoa e, portanto, da sua liberdade. Com efeito, foi aquele mercado que permitiu fomarem-se as instituições representativas e os direitos iguais. Eis por que vejo nas crises financeiras em curso muito mais do que "efeitos colaterais" de um grandioso processo de desenvolvimento econômico. Vejo uma mudança de sistema, uma metamorfose bastante radical do que chamamos de capitalismo. E as conseqüências são evidentes.

A primeira é a radical transformação do mapa social, que já me parece um fenômeno não redutível ao aumento das desigualdades (típica conseqüência de certas mudanças). Aqui se trata de outra coisa: da criação de uma oligarquia de super-ricos, comparáveis, pela loucura dos seus luxos, às velhas aristocracias anteriores à Revolução Francesa. E isto juntamente com a perda de status e de proteção de grande parte das classes médias e a formação de uma nova pobreza material, mas também moral e cultural. E se penso nas espantosas conquistas da ciência médica (os transplantes), que só se poderão aplicar nas clínicas para os super-ricos, pergunto-me se também não veremos o nascimento de super-raças.

Em segundo lugar, parece-me impressionante o esvaziamento da democracia. A crise da democracia como fenômeno não contingente, mas orgânico, em relação ao fato de que os sistemas políticos reduziram-se a subsistemas (tendencialmente clientelistas) de uma economia financeira mundializada, cujo poder supera o dos Estados. A conseqüência é que as atuais estruturas democráticas não são capazes de tomar as grandes decisões e, portanto, representar a vontade do cidadão (e não falo das suas pulsões efêmeras, mas daquilo que diz respeito à escolha do seu destino).

É assim que a democracia deixa de ser o lugar da participação. E, de fato, por que participar, se a democracia não é mais o lugar no qual permanece sempre aberta a possibilidade de mudar de algum modo a sociedade atual? O que resta da democracia (permito-me perguntar aos liberais), se ela perde o traço essencial que consiste em manter viva, junto com as liberdades individuais, uma tensão para a mudança? No dia em que desaparece a esperança de que seja possível mudar algo na relação entre dirigentes e dirigidos, a democracia se esvazia.

E, por fim, o que resta do mercado, se deixa de ser uma estrutura aberta? O mercado não é uma barafunda, para ele não pode valer só a lex mercatoria, de que nos fala Guido Rossi. Sua função alocativa, somada à capacidade de medir custos e eficiência, será por sua vez deslegitimada, se deixar de ser o lugar aberto no qual todas as pessoas, pelo menos em teoria, podem usufruir oportunidades iguais. De que mercado falamos, se nele irrompem fundos públicos de investimento criados por Estados que se chamam Dubai, Rússia, China, os quais, mais cedo ou mais tarde, pedirão contrapartidas não só econômicas, mas políticas? Está-se criando um novo e gigantesco capitalismo de Estado em escala mundial?

Pode ser que estas minhas considerações sejam descabidas. Como justificação, gostaria de dizer que nascem da preocupação de dar uma resposta convincente à séria questão que nos é formulada sobre a constituição do Partido Democrático. Por que a Itália - esta é a questão - deve ser o único país europeu sem uma esquerda, tendo em vista as novas injustiças e os desastres que ocorrem? É uma pergunta que sinto o dever de responder, inclusive pela dívida que tenho com minha história.

Não façamos confusão com as diferentes histórias da esquerda. Minhas reflexões e preocupações não são as da esquerda radical. Venho de Gramsci e seu tormento com a história da Itália; do marxismo como historicismo absoluto e, portanto, da historicização também de si mesmo; de Togliatti e da admissão da responsabilidade nacional. Mas, assim como considero a resposta da esquerda radical (o retorno à cultura da esquerda de classe) uma não-resposta, sinto, ao mesmo tempo, a debilidade de uma posição que sustentasse que o novo nome da esquerda é simplesmente o Partido Democrático. Não é assim. Existem novas razões básicas pelas quais não é assim. E estas razões não me parece serem aquelas que dividiram comunistas e socialistas, socialdemocratas "estatistas" e liberais de esquerda.

Não sei qual partido, na realidade, está nascendo, e me preocupa o peso que nele têm velhas culturas liberistas superadas pelos fatos: os novos fatos acima mencionados. Não quero cometer o erro oposto àquele cometido até recentemente pelos muitos entusiastas do modelo americano. Sinto cada vez mais a distância da velha cultura classista e aqui vejo a grande novidade do PD. Imagino este partido não só como aquela força nacional e unitária que a Itália dos guelfos e dos gibelinos, do Norte e do Sul, dos padres e das maçonarias jamais teve e de que tanto precisa, mas sobretudo como uma tentativa, um instrumento, uma idéia acerca da necessidade de pôr em campo uma nova subjetividade política, um pensamento político adequado ao fato de que começou uma nova história.

O que gostaria de compreender é se esta história é só a continuação (com óbvias variações) da precedente, ou se sua novidade também reside no fato de que se está abrindo um conflito novo. Por um lado, desenvolve-se uma presença diversa das populações humanas na terra (não só como número, mas como presença de forças ativas e de novas idéias de si), e tudo isso num mundo tendencialmente unificado, com o acirramento, pois, do problema relativo ao destino do homem e à necessidade de libertá-lo de velhos vínculos. Por outro lado, um modelo econômico-social que, não sendo capaz de dirigir este processo, deforma-se e gera aqueles problemas que mencionei. Os problemas do desenvolvimento humano.

Eis por que não se pode mais repropor a cultura, ainda que atualizada, da esquerda histórica. Os tempos são outros. E outras são as forças que estão vindo a campo. Devemos pôr um ponto final e recomeçar. Não é possível dirigir um movimento progressista e encontrar as novas massas juvenis se restarmos prisioneiros das pequenas vicissitudes italianas: uma país em decadência, porque não sabe mais o que é e não vê um futuro. Tentemos compreender por que este antigo país civil, há mais de dez anos, vota em massa e se entrega, especialmente no Norte, a um impostor até mesmo ridículo, como Berlusconi, e por que a esquerda, no sentido mais amplo (o país civil, os democratas) não conseguiu dirigir este país no caminho da recuperação.

As razões são muitas, e o noticiário nos dá indicações a respeito. Mas, além delas, há o fato de que há tempos não conseguimos identificar algo que chamamos de direita, mas que, na realidade, é uma mescla de poder econômico, de controle daquela potência inaudita que é a revolução científica e tecnológica, de egoísmo social, de administração das mentes através do uso da mídia e da cultura de massas. Não significa nada dizer capitalismo. Este nome não define a coisa que estou tentando compreender.

Por isso, a cultura da esquerda histórica, no fundo da qual resta a idéia de anticapitalismo, não tem êxito. Sobre o que fala? E em nome de que alternativa: o estatismo? Existe ainda a antítese Estado-mercado? Ademais, o que são, na realidade, o Estado e o mercado? E no entanto o mundo precisa de um novo horizonte qualquer, de um ideal, de uma alternativa: basta ver com que rapidez estamos destruindo o ecossistema. Mas também está claro que esta "alternativa" não é o reformismo subalterno à Tony Blair.

Eis o que me leva a cogitar estas observações, as quais só têm o escopo de redefinir o novo terreno do conflito: um conflito diferente, mas não menos dramático do que aquele que foi o velho conflito de classes nascido com o industrialismo. Se se trata disso, então se torna claro o porquê de uma nova cultura política e de um novo sujeito político. E então assim redescubro o futuro daquele partido novo, que não chamamos de "esquerda" mas que, na realidade, pode ser o novo antagonista. E se criaria a possibilidade de construí-lo numa base muito ampla, elaborando a idéia de um governo diferente do mundo e do desenvolvimento humano. Talvez esteja construindo castelos no ar, mas, se não propusermos estas perguntas aos homens modernos e às forças culturalmente vivas, por que fazemos política?

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Alfredo Reichlin foi membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do "governo sombra" daquele partido. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Recentemente, esteve à frente da comissão responsável pela redação da "Carta de valores" do PD (Partido Democrático). Dirige a Fondazione Cespe - Centro Studi di Politica Economica, em Roma.

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[1] Giulio Tremonti, político e economista da direita italiana, autor de um best-seller econômico, La paura e la speranza. Europa: la crisi globale che si avvicina e la via per superarla (Milão: Mondadori, 2008).



Fonte: L'Unità & Gramsci e o Brasil.

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