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PT: um partido nascido para o mercado

Luiz Werneck Vianna - Julho 2003
 

O conflito que marca as idas e vindas do PT em relação à reforma da Previdência são típicos de um partido que nasceu de costas para o Estado, diz o cientista político Luiz Werneck Vianna, 64, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). "O PT trouxe, em sua origem, a concepção de que a vida privada traz em si a possibilidade da melhor sociedade. Essa visão, predominante no PT, ficou camuflada durante muito tempo pela presença de outras forças, como a Igreja, a intelligentsia e os setores que vinham das lutas radicais dos anos 70", diz Vianna.

O PT se mostrou uma "versão radicalizada do PSDB" ao levar a proposta de reforma da Previdência ao Congresso, diz. "Havia alguma coisa no PSDB que o tornava mais respeitoso do Estado e das suas carreiras estratégicas. Isso foi perdido na proposta original. Agora, se confirmado é uma significativa mudança", avalia Werneck Vianna, que também preside a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs).

O descontentamento que a reforma causou ao Poder Judiciário, na concepção do especialista, foi por conta da ignorância do partido em relação a essa instituição. A concepção inicial que o governo petista tinha do Poder Judiciário, argumenta o cientista político, é "preconceituosa" e poderia criar instabilidade política. Para o especialista, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao negociar busca a estabilização de seu governo, como fez o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso: "Não adianta jogar a parte desorganizada da sociedade contra a parte organizada. Isso é populismo no pior sentido, demagógico".

Autor de livros como Corpo e alma da magistratura brasileira e A democracia e os três poderes no Brasil, Werneck Vianna não pertence à intelligentsia petista - foi filiado ao PCB, o Partidão - nem se considera no governo, mas tem a pretensão de fazer uma crítica mais construtiva do governo pela "esperança" que Lula trouxe com sua eleição. À intelligentsia do PT pede calma nas cobranças.

A seguir a entrevista, concedida a Jamil Nakad Junior.

 Qual a sua avaliação da mudança na reforma da Previdência por pressão do Judiciário?

Se for confirmada, terá sido uma mudança significativa. É uma alteração de rumo que reafirma o Estado como lugar estratégico para o crescimento econômico. O que era contraditório era o PT pensar em uma reforma da Previdência, de início, na linha oposta. Com essa alteração, tudo indica que vai haver uma solução mais consistente. É uma revisitação da tradição republicana.

O governo errou ao incluir o Judiciário na reforma?

A concepção que esse governo tem do Judiciário é preconceituosa e vem sendo típica dos dirigentes do PT há algum tempo. A concepção do PT sobre as instituições tem sido sempre negativa - o "Congresso dos picaretas", o Judiciário visto como antro de corrupção. Isso é uma mentira, o Judiciário é uma instituição saudável, o que não quer dizer que não haja problemas no seu interior. Nada que o processo democrático não possa erradicar. É uma visão, de um certo pedaço de São Paulo, que foi formado apenas pelo mercado - o Lula vem desse sindicalismo de mercado. As categorias com as quais ele manobra são categorias de mercado, que nunca entendeu a natureza do processo de formação da sociedade brasileira, principalmente o papel do Estado. A proposta original de reforma da Previdência vulnerava o que havia de mais precioso no Estado - os seus quadros. Esse país foi feito com essa gente e não pelo mercado. Foram o Estado e as elites políticas que teceram ao longo do tempo cenários favoráveis à aparição do mercado aqui. Nesse sentido, o PT é uma espécie de irmão siamês do PSDB. Eles são a dupla face da mesma moeda. E o PT tem se mostrado uma versão radicalizada do PSDB (quando tratou dos servidores). Mas havia alguma coisa no PSDB que o tornava mais respeitoso do Estado brasileiro e das carreiras estratégicas de Estado. Isso foi inteiramente perdido com a chegada do governo do PT.

Mas isso sempre foi assim?

É assim desde o começo. Esses homens chegam ao mundo contestando a legislação trabalhista, procurando relações puras de mercado. O novo sindicalismo que nasce no ABC, que toma forma lá por 1978-1979, é isso. Lula foi capaz de dizer em 1977 que o AI-5 dos trabalhadores era a CLT. Uma incompreensão profunda de que as liberdades e as instituições democráticas é o que importavam e não a vida de mercado que ele visualizava. Liberar o mercado de trabalho do controle da CLT porque os metalúrgicos queriam livre movimentação. Essa fabulação, de que a vida privada traz em si a possibilidade da melhor sociedade, tem sido a predominante no PT e ficou camuflada durante muito tempo pela presença de outras forças, como a igreja, a intelligentsia e os setores que vinham das lutas radicais dos anos 70. Mas com a vitória e os sucessivos ajustes que se foram fazendo o que temos aqui é a concepção originária: mercado. Uma versão ainda mais radicalizada do projeto do PSDB.

Houve um recuo por parte do governo?

Na verdade, estão sendo instituídos os termos de um novo consenso. Essa reforma levada ao Congresso foi feita de forma açodada. Nem as contas atuariais tinham sido apresentadas. O que se viu é que havia outras maneiras e critérios de eqüidade. As possibilidades desse acordo encontrar passagem são muito grandes. A lesão da reforma antes da proposta do Judiciário era um preço inaceitável porque ela estava pensada para resolver problemas fiscais. E deixava atrás de si um deserto, um Vietnã político e social. Deixar do jeito que está precipita inclusive uma crise entre poderes, uma falta de sintonia entre os poderes, que não vai ser benéfica para um processo subseqüente.

Por que o sr. acredita que a reforma da Previdência poderia gerar uma crise institucional se mantido o original?

O Judiciário não iria se sentir parte desse governo. O Judiciário não foi ameno para o presidente Fernando Henrique Cardoso. FHC teve apenas problemas tópicos em questões que diziam respeito aos interesses do governo e que o Judiciário com muita freqüência contestou. O governo tem que ter a idéia política da capacidade capilar que a magistratura tem. Um juiz, numa pequena cidade, está ligado a toda a rede societária. É um formador de opinião, é uma referência intelectual, moral, política, e está em toda parte. Fazer da magistratura uma adversária do governo é uma falta de sensibilidade política sem tamanho. Além do mais, essa corporação vem emigrando cada vez mais para uma posição muito favorável aos ideais igualitários. Para não falar do Ministério Público, que tem se demonstrado um representante dos interesses dos setores subalternos, de questões para as quais ninguém nunca chamou a atenção, como os interesses difusos e coletivos.

O presidente do STF, ministro Maurício Corrêa, está capitaneando a reação dos magistrados. Essa tarefa não deveria ser das entidades de classe?

A questão da liderança institucional na corporação não tem uma solução clara. O Supremo se esforça para se comportar como vértice da corporação. Isso sempre existiu em disputa com a Associação dos Magistrados do Brasil. No momento os dois convergiram. Não vejo nenhuma impropriedade. A reivindicação dos magistrados é extremamente válida. Essa reforma originalmente condenava a magistratura a perder a sua dignidade.

Mas ao ceder ao Judiciário, os governadores e mesmo a discussão no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social não ficou descredenciada?

A procura de consenso é sempre difícil. Não se pode ganhar em tudo. A estratégia de jogar o setor desorganizado contra o desorganizado não deu certo. Viu-se que o setor organizado, apesar de numericamente pequeno, tem força.

E os petistas fiéis que defendiam a proposta do governo que discurso vão utilizar?

Algumas lideranças petistas estão se considerando ultrapassadas. Pode gerar outro problema interno. O discurso do privilégio foi uma manobra demagógica que não deu certo e foi contra a realidade. Esse foi o discurso de Collor também.

Intelectuais como Paulo Arantes e Francisco de Oliveira já estão frustrados com Lula pelo fato de o governo ter adotado o caminho da continuidade ao governo FHC. O sr. concorda?

Claro que está tendo uma continuidade evidente do governo Fernando Henrique. E diria mais: continua-se e se radicaliza. A intelligentsia do PT e a militância mais aguerrida estão insatisfeitas com o PT.

Ainda há tempo para uma segunda fase, ou a continuidade é um caminho sem volta?

Questão de fé, é questão de fé. É ver. Não se trata de fechar as portas para este governo. Eu não tenho me comportado assim. Mas acho que algumas fronteiras estão sendo ultrapassadas. As pessoas precisam advertir. Isso não pode. Está errado. A proposta original de reforma da Previdência estava errada. Essa coisa tinha que parar. Não adianta esbravejar contra os poderes e invocar forças sobrenaturais. Não adianta jogar a parte desorganizada da sociedade contra a parte organizada. Isso é populismo no pior sentido, demagógico.

O sr. disse que o papel dos intelectuais é fazer uma crítica "para procurar uma alternativa". Além da Previdência, há algo mais que o sr. sugeriria mudar?

As possibilidades de mobilização da sociedade para a mudança ainda não foram feitas. Disse-se à sociedade que, para reformá-la, eram necessárias a reforma da Previdência e tributária. Precisamos delas, mas isso tinha que ser procedido de uma negociação que levasse a um consenso efetivo. O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, sobre o qual eu tive muitas esperanças e ainda tenho algumas, vem cumprindo que papel na produção desse consenso - de aproximação entre a sociedade e governo? Muito pouco. Parece mais um lugar onde o governo leva para carimbo as suas iniciativas. Deve-se chamar a sociedade. Governo de esquerda é isso. É governar também com a mobilização. Envolver as pessoas.

De que forma isso se daria?

Poderia se aproveitar o Conselho e tentar fazer com que ele fosse mais capilar, chegasse mais embaixo e envolvesse mais a sociedade no processo de discussão. Veja essa medida de incentivo ao microcrédito. A sociedade foi antes treinada para essa discussão? Não foi. Isso diz respeito a ela? Diz. Inclusive aos setores mais subalternos dela, mas aparece como um raio. Não há um processo de discussão que faça com que parte da experiência da vida popular chegue também à vida governamental. O Conselho é uma instituição boa. Não se deve perder a esperança de que ela venha funcionar bem, mas até então não vem sendo um lugar em que a criatividade social e política se manifeste. O Conselho podia estar propondo uma coisa nova, não podia?

O sr. declarou recentemente que "todo dia acorda, pega o jornal, abre e pensa: eu sou contra ou a favor desse governo do PT?". Continua indeciso?

Não me sinto parte desse governo. Tento acompanhar com simpatia, em razão do tipo de esperança que ele suscitou. Mas estou vendo com muita preocupação o encaminhamento dele. Não tanto pela questão econômica, mas sobretudo pela questão política. Esse acordo na reforma pode ser uma mudança.

A CUT, que nasceu pelo PT, diz que vai ser autônoma em relação ao governo Lula. Dá para acreditar nessa autonomia? Qual o destino do sindicalismo neste governo?

As tendências em relação à dependência vão existir, mas vão ser derrotadas. O sindicalismo brasileiro é muito forte, sempre foi. Não se pode contar a história desse país sem contar a história do sindicalismo, que tem uma presença muito poderosa aqui porque a modernização burguesa começa com o sindicalismo. O primeiro ato da Revolução de 1930 foi a criação do ministério do Trabalho e os dirigentes do regime de então o chamavam de Ministério da Revolução. Durante o curso da modernização burguesa no país, os sindicatos sempre tiveram muita presença. O sindicalismo brasileiro vai resistir.

A oposição ao governo Lula está desarticulada e sem discurso. O governo Lula será beneficiado pela ausência de uma oposição substantiva?

A desarticulação da oposição é uma questão de tempo. Vamos ter condições de medir isso nas eleições municipais de 2004. E o que está sendo feito agora com as reformas poderá repercutir nas eleições. A sociedade brasileira é uma sociedade com baixo nível de organização e é muito fragmentada, como quase todas no mundo. Mas dentro dela há um núcleo minoritário, mas muito organizado. Esse núcleo tem capacidade capilar de articulação com a sociedade. A primeira coisa que um governante deve fazer é conquistar a estabilização de seu governo. O que se pode dizer do Fernando Henrique é que ele nunca perdeu de vista isso. O governo Lula tem que ouvir esse conselho de que a primeira preocupação do governante é se manter no governo. Vai fazer a reforma que puder fazer, como puder fazer. Não pode inverter. Fazer reformas na lei ou na marra, ou fazer as reformas contra o Congresso, o Judiciário. Não façam dos setores organizados bode expiatório da sociedade.

A oposição mais consistente ao governo acabou sendo a dos próprios petistas. O governo errou na dose com os radicais?

Não tenho a menor dúvida que o Partido dos Trabalhadores tem sido muito radical com seus próprios radicais. A questão da dissidência do PT não diz respeito apenas ao partido, mas a toda a sociedade. Uma solução de cima para baixo, que termine com um expurgo clássico, é absolutamente inaceitável. Embora tenha posições contrapostas ao dessa gente ao longo de toda a minha vida, vejo isso como um ato antidemocrático, um ato contra o qual devemos nos levantar porque não é apenas um partido comum, é um partido de governo, que está dirigindo o Estado, e seria uma decisão autocrática, com razões de Estado e não com razões políticas que viessem da própria discussão livre das suas bases, que foram treinadas inclusive para outra percepção. Foram treinadas para percepção de Estado, antimercado e denúncia do neoliberalismo. Ficaram vinte anos nisso. Agora chega e diz: "Mudei". E não apresenta suas razões? Mudaram por quê? Isso ainda não foi apresentado. Não é à-toa que os radicais não estão isolados como a princípio se pensou. A expulsão deles a essa altura vai causar uma lesão sem tamanho, não apenas no PT, mas no governo.

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Fonte: Valor econômico, 15 jul. 2003.

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