Ao analisar os recentes episódios de corrupção no Brasil, a partir da prisão (ou da tentativa de) do banqueiro Daniel Dantas, o professor Luiz Werneck Vianna, do Iuperj, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, identifica apenas "o capitalismo operando". Para ele, o mal não está em figuras como as de Dantas ou de Eike Batista, "como se a sociedade fosse melhorar se nos livrássemos delas". Ele garante: "Não vai melhorar. A sociedade vai melhorar se organizando em torno das suas questões centrais", que são, na sua opinião, o crescimento econômico, a reforma agrária e a democratização da propriedade. O pesquisador acredita que "os piores instintos da sociedade estão sendo suscitados com tudo isso". E que a solução virá "com mais polÃtica". "O que constatamos, ao longo desse episódio, é que a polÃtica recua. Não há polÃtica. Está faltando sociedade organizada, reflexiva. A polÃtica está reduzida ao noticiário policial", explica.
Werneck Vianna é professor pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Doutor em Sociologia, pela Universidade de São Paulo, é autor de, entre outros livros, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997), A judicialização da polÃtica e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999) e A democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002).
Personagens como Daniel Dantas e Eike Batista avançaram sobre nacos importantes do patrimônio do Estado brasileiro. Quais foram as condições polÃticas e econômicas que permitiram o surgimento desses personagens?
O Brasil é um paÃs capitalista. E esses são empresários audaciosos, jovens, e têm encontrado um terreno favorável a tratativas com o executivo no sentido de fazer negócios de interesse comum. E nisso parece que ambos têm se complicado muito. No entanto, há uma zona de sombra que ainda precisa ser esclarecida. Meu problema em relação a tudo é essa sucessão de intervenções espetaculosas da PolÃcia Federal, a mobilização da mÃdia, do Ministério Público, do Judiciário e da opinião pública para esses fatos. As questões centrais não são essas. Com essa cortina espetacular, o mundo continua como dantes. Nada muda no que se refere à questão agrária, à s polÃticas sociais. A população anda desanimada, desencantada. Além disso, o que aparece aqui, que é muito perigoso, é um espÃrito salvacionista. Há um "Batman institucional" atuando sobre a nossa realidade. Esse "Batman" é a PolÃcia Federal associada ao Ministério Público. Há elementos muito perigosos aÃ, de Ãndole messiânica, salvacionista, apolÃtica, que podem indicar a emergência de uma cultura polÃtica fascista entre nós. Todos esses escândalos e espetáculos atraem a opinião pública como se a salvação de todos dependesse de apurar os negócios do Eike Batista e do Daniel Dantas. Não depende, isso é mentira! Com isso, se mobiliza a classe média para um moralismo que não pára de se manifestar. A polÃtica cai fora do espaço de discussão. Enquanto isso, aparecem dois personagens institucionais, ambos vinculados ao Estado: o Ministério Público e a PolÃcia Federal. Este caminho é perigoso, e a sociedade não reage a ele faz tempo. A cultura do fascismo pode se manifestar com traços mais bem definidos, a partir da idéia de que nosso inimigo é a corrupção, especialmente aquela praticada pelas elites. Então, a sociedade acha que se resolve esse problema colocando a elite branca na cadeia. Desse modo, o paÃs viveria numa sociedade justa. Não vai, mentira!Â
O que o senhor considera como as questões centrais na sociedade brasileira, que devem ser discutidas com mais ênfase?
O tema do crescimento econômico, da reforma agrária, da democratização da propriedade. Para isso ninguém mobiliza ninguém.
Pode-se afirmar que os anos dourados do neoliberalismo brasileiro produziram uma nova burguesia nacional da qual Daniel Dantas e Eike Batista são hoje personagens centrais? O que distingue essa nova burguesia da "velha burguesia nacional" do perÃodo desenvolvimentista?
Eike Batista não é um homem das finanças, e sim um homem da produção. O Daniel Dantas, não. Ele é um homem do setor financeiro. Este setor apresentou enormes possibilidades. Esses executivos do setor financeiro não têm 40 anos. Se examinarmos os currÃculos deles, veremos que são formados por boas universidades, com doutorado no exterior. Apareceu um novo mundo para esses setores médios e educados da população, especialmente os economistas. Passa-se da posição de economista para a posição de banqueiro hoje muito facilmente.Â
Como o senhor interpreta essas relações aparentemente ambÃguas que o banqueiro Dantas tinha, ao mesmo tempo, com o mercado financeiro internacional e os fundos de pensão do Estado do qual fazem parte sindicalistas? Acabou-se a velha contradição capital–trabalho?
Essa questão dos fundos previdenciários existe em toda parte, não apenas no Brasil. E o controle disso tem sido em boa parte corporativo. Quem mexeu com a questão e falou no surgimento de uma nova classe foi o Francisco de Oliveira. Não sei se devemos concordar inteiramente com o que ele diz, mas, pelo menos, é uma alusão importante. O capital hoje tem uma outra forma de circular, e isso não ajuda o mundo sindical a se reorganizar. O que vemos é um sindicalismo inteiramente cooptado pelo Estado. Dantas jogou com as oportunidades que viu. Até agora, as únicas coisas concretas pelas quais ele pode ser pego são o suborno ao policial e seu problema com o Imposto de Renda. Esse é o capitalismo operando. Daqui a pouco vão querer "prender" o capitalismo. E não creio que isso esteja na intenção da PolÃcia Federal. O mal não está nessas figuras, como se a sociedade fosse melhorar se nos livrássemos delas. Não vai melhorar. A sociedade vai melhorar se organizando em torno das suas questões centrais.
O banqueiro Dantas estabeleceu uma rede de conexões polÃticas ao longo de três governos - Collor, FHC e Lula. Como entender o poder de Daniel Dantas, sua capacidade de manipulação e envolvimento de tantas pessoas, de diferentes governos, nessa malha de corrupção?
Era necessário que nessa rede público-privada aparecessem personagens. Essa rede não podia se montar sem pessoas concretas. Dantas foi uma. O ponto da privatização estabeleceu um caminho para que esses homens encontrassem a sua oportunidade.
O senhor considera que o caso Dantas ameaça o conceito de República, ou se pode afirmar que efetivamente o Brasil nunca desfrutou do status de República?
Não ameaça nada. Esse é um affaire midiático, com cortinas de fumaça. Os piores instintos da sociedade estão sendo suscitados com tudo isso. Vejo as primeiras fumacinhas de uma sÃndrome fascista entre nós. E isso deve ser denunciado, combatido, e com polÃtica, com mais polÃtica. O que constatamos, ao longo desse episódio, é que a polÃtica recua. Está faltando sociedade organizada, reflexiva, e a polÃtica está reduzida ao noticiário policial.
Como o senhor analisa a postura do Supremo Tribunal Federal nesse caso? Como interpreta o comportamento do ministro Gilmar Mendes?
Interpreto bem. O papel da Suprema Corte é defender a Constituição, as liberdades individuais, e também não deixa de incorporar essa preocupação com o testemunho do espetacular que essas operações policiais manifestam. Uma outra questão vinculada a isso é a escuta telefônica. Estamos indo para um estado policial? Com isso, a sociedade aprende a apontar como culpado o "malvado" lá da ponta, responsável por todos os males, que, caso preso e execrado, fará com que ela melhore. Num ano eleitoral, tudo se discute, menos a polÃtica. Não podemos defender a idéia de que um grande inquérito, um grande processo pode resolver as máculas da nossa história, criar um novo tipo de encaminhamento feliz para nós (e isso é feito pela polÃcia, pelos grampos telefônicos, pela repressão!). Isso não lembra a linguagem do regime militar, quando ele se impôs, de que o grande inimigo é a corrupção? Só que agora tudo está sendo feito numa escala nova, imensa, com um domÃnio total dos meios de comunicação. O próprio Congresso se tornou uma ampla comissão parlamentar de inquérito, apurando, investigando e não discutindo polÃticas e soluções para os problemas. Além do mais, temos um grupamento novo na sociedade: a PolÃcia Federal é nova. Ela foi extraÃda da classe média. Seu pessoal é concursado, bem formado, com curso superior. Seus integrantes estão autonomizados a ir para as ruas com esse sentimento messiânico, que aparece no relatório do delegado Protógenes, de que a PolÃcia pode salvar o mundo.
Qual é a sua opinião sobre o combate à corrupção no Brasil? Este episódio recente abre a possibilidade de mudanças?
Nesse processo, a ordem racional legal avança, se aprimora, se aperfeiçoa. No entanto, o que tento combater é uma visão salvadora, justiceira, messiânica do papel policial para a erradicação dos nossos males, como se não devesse haver nenhum impedimento entre a ação da polÃcia e a sociedade, como se não devêssemos ter habeas corpus, como se as pessoas pudessem ser presas, retiradas das suas casas nas primeiras horas da manhã, algemadas, e tudo isso passando por câmeras de televisão... Não creio que isso seja um indicador de democracia.
Que tipo de sentimento esse episódio provoca na população brasileira? Revolta, descrédito nas instituições?
Descrédito. E também aprofunda o fosso entre a sociedade e a polÃtica, mantém a sociedade fragmentada, isolada, esperando que a ação desses novos homens, dessas corporações novas, nos livre do mal. Talvez eu tenha dado muita ênfase à dimensão negativa de tudo isso, mas também vejo que esse processo pode ser corrigido se a ordem racional legal for defendida por recursos democráticos, sem violência, com respeito à s leis, à dignidade da pessoa humana. É possÃvel avançar na ordem racional legal, investigando a corrupção, prendendo seus responsáveis, mas sem que isso assuma o caráter de escândalo, de espetáculo, no qual parece que temos um agente de salvação em defesa da sociedade. Isso sim é perigoso.Â
----------
Entrevista originalmente publicada em IHU On-Line. Revista do Instituto Humanitas Unisinos. São Leopoldo, 21 jul. 2008, n. 265.
----------
Artigos relacionados:
A história absolvida
Pacto social e generalização da representação
PT: um partido nascido para o mercado
O PT é quase um partido liberal
O PT já se definiu como partido de centro
O inferno e as boas intenções
Não somos indianos agachados
Ziguezagues, linhas retas e voltas redondas
O Estado Novo do PT
PaÃs vive "Estado Novo do PT"
A sucessão de Lula e o retorno do nacional-popular
Moralismo cancela debate democrático
O PT recuperou a Era Vargas
O caso da Embraer
PrincÃpios no coração da matéria
Hoje, só Lula faz polÃtica no Brasil
Corações partidos
Tópicos para um debate sobre conjuntura
O fim da história do Brasil ou um novo começo para ela
Observador polÃtico 2010
Observador polÃtico 2011