Busca:     


Hidrelétrica: o monstro Belo Monte

Lúcio Flávio Pinto - Outubro 2015
 

O início do enchimento do reservatório para que a hidrelétrica de Belo Monte comece a funcionar no próximo ano provoca polêmicas. O Ibama não autorizou a operação da usina. Seu projeto contém um desafio sem igual para a engenharia.

A Norte Energia se comprometeu a manter uma vazão mínima de 700 metros cúbicos (o equivalente a 700 mil litros) de água por segundo quando for - se for - realizar o enchimento do reservatório da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, em fase final de conclusão, ao custo de mais de 30 bilhões de reais. É quase o dobro da menor vazão natural já observada, que foi de 365 m3, em 2003. A média das mínimas é em torno de mil metros cúbicos por segundo.

Significa que jamais a empresa poderia iniciar a formação do lago artificial neste mês de setembro. Provavelmente conseguirá começar a reter água em novembro para em fevereiro ter um fluxo capaz de acionar a primeira das 18 turbinas, cada uma necessitando de 750 mil litros de água por segundo. Quando funcionarem em conjunto, tornarão Belo Monte a terceira maior usina de energia do mundo, com potência de 11 mil megawatts no auge das cheias anuais.

Uma polêmica se estabeleceu porque, por uma norma em vigor desde 2009, a Norte Energia só podia fazer o enchimento entre janeiro e junho, o período de cheia do Xingu. O rio já atingiu o volume recorde de 32 mil m3 por segundo, em 1980 (quando também o Tocantins, que abriga a hidrelétrica de Tucuruí, a quarta maior do mundo, chegou ao seu máximo histórico, de mais de 68 mil m3). Por ser o período de maior vazão do rio, seu bloqueio demoraria menos tempo, causando menos problemas aos que dependem dele ou podem ser prejudicados pela interrupção do fluxo natural das suas águas.

O jornal O Estado de S. Paulo foi informado de que essa regra foi alterada no final de dezembro do ano passado, quando a Agência Nacional de Águas liberou a concessionária de qualquer limitação de tempo. Podia represar o rio para encher sua reserva de água a qualquer momento. Para o jornal, o objetivo da medida seria favorecer a Norte Energia.

Por contrato já assinado, a empresa deveria começar a fornecer energia aos clientes em fevereiro de 2016, mas seu cronograma está atrasado 455 dias. A Agência Nacional de Energia Elétrica não concordou prorrogar o prazo, negando isentar em concessionária de culpa pelo retardamento, conforme ela reivindicou. Mas a Norte Energia obteve esse reconhecimento através de medida liminar na justiça.

Não adiantou: na semana passada o Ibama se recusou a dar a licença de operação de Belo Monte, exigindo que a empresa cumpra condicionantes que ainda não foram atendidas ou se explique a respeito. Pela relação de pendências e o estágio em que se encontram, a autorização ainda irá demorar, apesar da confiança manifestada pela Norte Energia de que a obteria logo.

A empresa garante que todas as condicionantes socioambientais do empreendimento foram cumpridas e que a licença do Ibama é apenas uma questão de tempo. Mas o Ministério Público Federal discorda desse entendimento e pediu na justiça a suspensão da concessão da autorização até que a concessionária cumpra todos os compromissos do licenciamento ambiental. A ação ainda não foi decidida, mas foi suprida pela decisão administrativa do Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.

Para o Ministério Público Federal, um impedimento para a liberação da licença de operação é a resolução do Conselho Nacional de Direitos Humanos, órgão colegiado da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, aprovada por unanimidade no mês passado.

A resolução recomenda o adiamento da autorização para a formação do lago da usina até o cumprimento efetivo e integral das condicionantes que constituem as premissas do Plano Básico Ambiental, que a empresa se comprometeu a adotar. Os conselheiros que estiveram em junho em Altamira constataram "violações graves de direitos humanos".

O MPF, que desde 2006 fiscaliza o empreendimento, já apresentou 23 ações perante a justiça federal questionando sobre irregularidades na obra. Segundo a assessoria de imprensa do MPF, a resolução "pede a investigação efetiva das denúncias de desvio da madeira retirada na área dos canteiros de obra, a eliminação de todas as práticas e métodos de pressão e ameaça sobre os atingidos, a reavaliação dos critérios e a revisão de indenizações pagas às pessoas que não tiveram assistência jurídica, a concessão de moradias para as famílias que não foram contempladas, o reconhecimento de oleiros, garimpeiros, carroceiros, pescadores e outras categorias como atingidos pela usina, a compra de áreas para reassentamento coletivo de famílias que viviam em comunidade, entre outras".

Se realmente não cumpriu os compromissos do licenciamento ambiental, a Norte Energia não pode dar sequência ao cronograma, o que lhe causará prejuízos pelas pesadas multas a pagar por descumprimento de contrato. Mas isso nada tem a ver com prejuízos para a pesca, a navegação e o uso em geral da água do rio a jusante da barragem e do vertedouro principal.

A exigência do licenciamento é clara e satisfatória nesse aspecto: a empresa terá que assegurar a vazão mínima de 700 m3 no verão e pelo menos de 4 mil m3 no inverno. É o suficiente para não prejudicar quem mora nas margens do Xingu.

O problema está justamente na situação inversa: há pouca água para suprir o conjunto de turbinas da casa de força principal da usina, que precisa de mais de 14 mil m3 (ou 14 milhões de litros) de água por segundo para funcionar na plenitude. O lago de Belo Monte terá um terço da área prevista no projeto original. Serão 516 quilômetros quadrados. Sua relação entre capacidade instalada e área alagada (megawatt por km2) será a terceira do país, atrás apenas de Xingó e Paulo Afonso IV.

O lago que ficará na calha do Xingu terá 382 km2, área apenas um pouco superior à de uma cheia normal do rio. Mas outros 134 km2 constituirão um reservatório complementar, fora do eixo do rio, que será formado através de desvio de água para que ela corra por um leito artificial, através de um canal com 200 metros de largura e profundidade equivalente a um prédio de oito andares (ou 25 metros). No total, serão 220 quilômetros de canais de concreto e areia, obra sem igual em qualquer outra hidrelétrica.

A construção e o funcionamento desses canais, contidos por diques, que exigiram quantidade de concreto superior à do canal do Panamá, decorrem da inexistência de um reservatório único em escala compatível com a capacidade nominal de geração de energia de Belo Monte. No projeto original, estava previsto um reservatório, a montante de Belo Monte, de seis mil quilômetros quadrados, o de Babaquara, só para acumular água para que não acontecesse o que sucederá no esquema atual: a usina ficará praticamente parada durante quatro meses.

Apesar dos estudos, cautelas e providências adotadas, o funcionamento desse esquema ainda envolve incógnitas suficientes para que represente o maior desafio na história da engenharia de grandes barragens no Brasil. É um título que caberá a Belo Monte se a obra chegar ao fim.

----------

Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006), Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007), Memória do cotidiano (2008) e A agressão (imprensa e violência na Amazônia) (2008).

----------

Artigos relacionados:

Eu sou amazônida, e você?
Hidrelétricas na Amazônia: nunca mais?
Belo Monte: hidrelétrica amaldiçoada
No Pará, a volta dos grandes projetos
A hora da barragem: a razão fica de fora
As cheias na Amazônia
Belo Monte inviável
Leilão de Belo Monte: escândalo anunciado
Belo Monte confirma a energia da colônia
Os índios é que decidirão sobre usina de Belo Monte?
Amazônia: boas intenções não bastam
Belo Monte: o monumento e o monstro
Belo Monte: agora é caminho sem volta?
Belo Monte: a guarda do paraíso
Governo Federal quer a energia da Amazônia
Atraso de Belo Monte pode custar 4,5 bilhões
O Brasil descobre a água



Fonte: Jornal Pessoal & Gramsci e o Brasil.

  •