Como Lina Bo Bardi viu no circo ideia para criar cadeiras icônicas do móvel moderno
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Uma cadeira de estrutura em jacarandá e assento de couro rústico, compacta, empilhável e fácil de transportar. O móvel, desenvolvido por Lina Bo Bardi para o auditório da primeira sede do Masp, no final da década de 1940, já mostrava a proposta que a arquiteta italiana recém-chegada a São Paulo desenvolveria nos anos seguintes --a incorporação de materiais tipicamente brasileiros ao seu desenho modernista de matriz europeia.
"É uma cadeira baseada em cadeiras de circo itinerante, e não há nada mais popular do que um circo. O assento é de um couro típico das vestimentas dos povos do sertão. Não tinha paralelo na época. As pessoas estavam acostumadas com móveis luxuosos, com aqueles tecidos, aquelas poltronas", diz Sergio Campos, galerista e autor de um livro recém-lançado sobre os dez primeiros anos da carreira de Bo Bardi como designer no Brasil.
"Lina Bo Bardi: O Mobiliário dos Tempos Pioneiros 1947-1958" é um calhamaço de 350 páginas e vários quilos que documenta e sistematiza, pela primeira vez, as criações conhecidas da designer e de seu Estúdio Palma, no mobiliário e no design de interiores.
No decorrer da leitura, fica claro como as ideias de Bo Bardi, originais para a época, ajudaram a dar a cara do móvel moderno e até contemporâneo no Brasil.
O livro, o primeiro de duas partes, surgiu a partir de uma exposição de mesmo nome na Casa de Vidro, onde a arquiteta morou, e resulta de dez anos de pesquisa do autor. Campos teve acesso durante a escrita a imagens e documentos inéditos e publicados agora pela primeira vez do Masp, do Instituto Bardi e das famílias dos arquitetos modernistas Gregori Warchavchik e Vilanova Artigas, além de herdeiros do médico Mário Taques Bittencourt, para quem Bo Bardi desenvolveu poltronas e cadeiras.
Até o surgimento da cadeira Masp, em 1947, não havia uma produção de design com linguagem propriamente brasileira, argumenta o autor, no sentido de usar a arte e a cultura populares para propor um diálogo com o modernismo a partir daqui. Os designers atuantes no Brasil no período, como John Graz e Warchavchik, se alinhavam com o que era produzido fora do país.
Bo Bardi foi pioneira em colocar em pé de igualdade o conhecimento erudito adquirido em sua educação na Itália, influenciado pelo racionalismo e pela Bauhaus, com elementos do cotidiano brasileiro como o couro, as redes de descanso e até conduítes elétricos, num processo que o autor chama de "antropofagia ao contrário".
O pesquisador chama a atenção para o fato de que a designer já tinha uma produção volumosa de cadeiras, poltronas e espreguiçadeiras antes de desenvolver seus projetos arquitetônicos mais conhecidos, o Masp e o Sesc Pompéia, em âmbito público, e a Casa de Vidro e a Casa Cirell, em caráter privado, ao contrário do que era corrente naqueles anos.
Segundo conta a história do design brasileiro, primeiro vieram as casas e os prédios modernos --vários deles para abrigar órgãos do governo--, em um contexto no qual a arquitetura brasileira já era reconhecida no exterior, e depois surgiram os móveis para preencher os cômodos, "geralmente desenhados pelos próprios arquitetos ou encomendados por eles, salvo exceções como Joaquim Tenreiro ", escreve Campos.
Neste contexto, o Estúdio Palma --mantido por Bo Bardi com seu marido, Pietro Maria Bardi, e o arquiteto Giancarlo Palanti--, é considerado um dos primeiros escritórios de design de interiores do Brasil. No livro, há a reprodução de uma lista de cadeiras, poltronas e divãs produzidas pelo trio, que serviu como guia das pesquisas do autor.
O volume também aborda a influência das criações da italiana na geração de designers do pós-guerra, como Sergio Rodrigues e Jean Gillon, dois dos principais nomes do móvel brasileiro. Admirador de Bo Bardi, o criador da poltrona Mole utilizava, por exemplo, cintas de couro selvagem em suas peças, como no caso do sofá Mole, e Gillon se inspirou nela ao empregar uma rede de pesca na poltrona Jangada, talvez sua criação mais conhecida.
No segundo livro da série, previsto para sair este ano, o autor aborda como os irmãos Campana também olharam para as peças da designer, numa tentativa de traçar o histórico da influência de Bo Bardi, que chega até o contemporâneo.
Embora a pesquisa de Campos atraia um público interessado, leitores curiosos serão beneficiados por um texto em tom afetivo e não acadêmico, sem jargões, decorrente da paixão do galerista pelo seu objeto de estudo. Também fotógrafo, o autor registrou criações de Bo Bardi em contato direto com a cidade de São Paulo --a cadeira de Três Pés "interagindo" com a avenida São João e o viaduto Santa Ifigênia, e um carrinho de chá camuflado entre carrinhos de supermercado.
O autor escreve que sentiu "a necessidade de sair das quatro paredes dos estúdios e de incorporar a vida da cidade e o movimento das pessoas em torno dos móveis de Lina. Imaginei que ela iria gostar da maneira como foi feito, se pudesse opinar, com pessoas comuns em volta dos móveis, no dia a dia qualquer de uma cidade como São Paulo".
"Nada de cadeira engomadinha com pedestal e fundo infinito."
LINA BO BARDI - O MOBILIÁRIO DOS TEMPOS PIONEIROS 1947 - 1958
Preço: R$ 350 (356 págs.)
Autor: Sergio Campos
Editora: Artemobilia Publicações