Chile sob Kast será diferente, mas não uma ameaça ao Estado de Direito, diz sociólogo
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Para o sociólogo Eugenio Tironi, a vitória de José Antonio Kast no último domingo (14) foi um evento histórico para o Chile, devido a chegada ao poder, pela primeira vez desde a redemocratização, de um candidato de ultradireita. Por outro lado, o especialista diz crer que a esquerda não saiu tão desgastada, mas precisa fazer uma autocrítica dos últimos anos.
O que mais o preocupa, segundo disse em entrevista à reportagem, é a promessa de linha dura com a imigração e como a sociedade e a economia [que depende muito dos imigrantes] vão ser impactados.
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PERGUNTA - Embora Jose Antonio Kast seja um representante da chamada nova ultradireita, o Chile democrático nunca deu apoio a experiências extremas. Gabriel Boric, de esquerda, deu uma guinada ao centro já no primeiro ano de mandato. O direitista Sebastián Piñera também fez vários acenos ao centro e à esquerda. O sr. pensa que isso também deve acontecer com Kast?
EUGENIO TIRONI - Estou de acordo com essa premissa. De fato, nesta campanha em que se apresentaram dois candidatos que, no papel, eram os dois extremos, ou seja, Kast e [Jeanette] Jara, a direita radical contra a esquerda radical. Mas, ao longo da campanha, especialmente no segundo turno, eles foram convergindo cada vez mais. Só que convergindo para uma agenda eminentemente conservadora, ou seja, segurança, crescimento econômico, imigração, reforma do Estado.
P - Como avalia a performance de Jeannette Jara?
ET - Jara fez o humanamente possível para chegar onde chegou, inclusive cruzou barreiras que a esquerda dos últimos 20 anos jamais teria cruzado. Por exemplo, ela quase não mencionou a palavra meio ambiente, declarou que não era nem feminista nem machista, não falou de diversidade, não falou dos povos originários. Ou seja, rompeu com toda a agenda moderna ou "woke".
Mas, ainda assim, diante de uma agenda desse tipo, ela não tinha a credibilidade que Kast tem. E Kast, por sua vez, deixou no congelador sua agenda de valores, que era mais problemática para as mulheres e os jovens, apoiou-se no voto de homens entre 25 e 40 anos, como faz essa direita em todo o mundo, e suavizou todas as suas posturas contrárias ao Estado de bem-estar.
P - Uma estratégia que se mostrou eficiente, portanto.
ET - Sim, no próprio domingo à noite, ele fez declarações no sentido de reduzir expectativas, assegurar o respeito ao Estado de Direito, promover o diálogo com a oposição e buscar acordos nacionais. Ou seja, uma postura de continuidade. De fato, hoje [segunda-feira (15)] ele se reuniu com o presidente Boric. Eu acho que, desde as primeiras horas, vimos que o candidato Kast de hoje é muito diferente daquele candidato aguerrido, combativo e agressivo que proclamava uma ruptura radical com Boric e seu governo.
P - Mas, ainda assim, estamos diante de um momento histórico, não? Trata-se do primeiro político de direita que ainda reivindica Pinochet, que votou no "sim" no referendo de 1988, para que a ditadura continuasse, e que chega a Presidência. Em que sentido isso pode impactar o Estado de Direito e as instituições sólidas do Chile?
ET - Sim, este é um momento histórico. Kast foi a voz que conseguiu representar aquilo que aqui no Chile chamamos de voto obrigatório, ou seja, todo o voto que entrou a partir do momento em que se decretou o voto obrigatório. Nós tínhamos voto voluntário e, ao restabelecer o voto obrigatório, entraram no cadastro eleitoral 5 milhões de eleitores, e praticamente esses 5 milhões de eleitores foram para a direita, para Kast.
Para que se tenha uma ideia, Jara obteve praticamente os mesmos votos que Boric quando o voto era voluntário. Ela ficou com um bolsão no núcleo mais politizado e mais mobilizado da sociedade.
O resto do Chile real foi em favor de um discurso e de uma postura de uma direita muito clássica, que defende ordem pública, restauração da autoridade, dureza contra o crime, e que deixa fora do radar palavras, conceitos e políticas relacionadas a direitos humanos, diversidade, desigualdade, apoio a grupos vulneráveis, aprofundamento da democracia.
Então é uma mudança importante, que você vai notar não necessariamente no plano legislativo, nem necessariamente em tentativas de atropelar o Estado de Direito, mas sim no estilo, nos ênfases da administração, de cima para baixo. Portanto, sim, haverá impacto.
P - Considera que Kast poderia imitar Javier Milei e seu plano motosserra?
ET - Creio que Kast tentará uma política de choque em termos de ajustes nos gastos sociais, mas mais limitada do que a que Milei fez na Argentina. Eliminação de ministérios e do tamanho do Estado, seguramente. Mas nada na mesma dimensão do que fez Milei, muito menos com a mesma agressividade.
P - Qual foi o peso do fator imigração nessas eleições?
ET - Muito alto, porque ocorreram duas coisas curiosas. Primeiro, muitos imigrantes votaram em Kast. Segundo, o medo dos imigrantes foi um fator que impulsionou o voto a favor de Kast. Esse medo é muito disseminado. Foi um fator decisivo e representa um desafio gigantesco para Kast, porque ele prometeu que, antes mesmo de assumir, a imigração já estaria em retrocesso, que haveria filas de imigrantes retornando aos seus países. Ele será julgado por essa promessa.
Esse será um tema extremamente crítico para ele. Além disso, no final da campanha, ele chegou a falar em expulsar todos os imigrantes para que depois, se quisessem voltar, retornassem de forma regularizada.
Se for assim, as imagens seriam muito duras, como já estamos vendo nos EUA. Perseguir imigrantes para deportá-los não seria algo bem aceito por boa parte da sociedade. Além disso, haveria um impacto econômico relevante, porque a agricultura chilena depende dos imigrantes, assim como boa parte dos serviços e do trabalho mais básico. Não é um assunto simples. Ainda assim, foi um fator muito importante para a vitória de Kast.
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RAIO-X | EUGENIO TIRONI, 74
Doutor em sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris e membro da Academia de Ciências Sociais, Políticas e Morais do Instituto do Chile. Foi colaborador dos governos Patricio Aylwin e Eduardo Frei e chefe de comunicação de Ricardo Lagos.
