O que a ciência já sabe (e o que ainda não sabe) sobre as emendas parlamentares?
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - No centro de crises recentes entre os três Poderes, as emendas parlamentares costumam ser debatidas sob o ponto de vista político. Mas o que a ciência já sabe sobre elas?
Os diversos estudos existentes, em sua maioria críticos, abordam três grandes temas: o impacto na relação entre o Executivo e o Legislativo, a influência nas eleições e seus efeitos em políticas públicas, explica Maria Dominguez, pesquisadora da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) com trabalhos sobre o tema.
O problema é que grande parte dessas análises ainda não abrange o período pós-2020, quando os repasses dispararam por decisões do Congresso, nem considera outras modalidades além das emendas individuais, como as verbas "Pix", de bancadas estaduais, de comissões e de relator (estas já extintas).
"Agora, há uma grande movimentação de acadêmicos para ver se as antigas conclusões se mantêm ou não. Temos pistas para achar que muita coisa mudou, mas ainda há mais dúvidas do que certezas", diz Dominguez.
Em junho, o ministro Flávio Dino, do STF (Supremo Tribunal Federal), convocou uma audiência pública para reunir dados técnicos antes de julgar se o governo deve continuar sendo obrigado a pagar as emendas individuais, indicadas por deputados e senadores, e as de bancadas estaduais.
O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) publicou uma série de estudos que mostram a crescente importância das emendas parlamentares no financiamento de serviços públicos, mas também indicam falta de critérios técnicos de alocação de recursos e possível aumento da desigualdade entre municípios no recebimento dos repasses.
Saiba o que a literatura científica já mostrou sobre o tema e o que ainda carece de evidências.
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O QUE JÁ SE SABE
EMENDAS NO BRASIL TOMARAM PROPORÇÃO ATÍPICA NO MUNDO
O poder que o Congresso Nacional brasileiro tem hoje sobre os gastos do governo é muito superior ao de 11 países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), concluiu um estudo publicado pelo Insper em 2024, dos autores Marcos Mendes e Hélio Tollini.
Mesmo nos Estados Unidos, onde o Legislativo pode refazer todo o Orçamento enviado pelo Executivo, os parlamentares só podem definir até 1% das despesas discricionárias (que não incluem gastos obrigatórios como aposentadorias e salários). Enquanto isso, no Brasil esse percentual alcançou cerca de 24%.
A primeira parte da análise do Ipea também reforça o peso que as emendas ganharam na última década: na saúde, por exemplo, elas atingiram a impressionante marca de 53% dos gastos não obrigatórios em 2023, ante 19% em 2014. Na educação, saltaram de R$ 360 milhões para R$ 1,8 bilhão.
EMENDAS DA SAÚDE NÃO VÃO PARA OS LOCAIS MAIS NECESSITADOS
Ainda segundo o Ipea, estudos anteriores alertam que, apesar de ir para cidades mais pobres, as emendas aplicadas no SUS "não consideram indicadores de saúde da população" nem os serviços já ofertados nas regiões. Além disso, a inconstância dos valores recebidos de um ano para o outro pode dificultar a programação das ações.
Como esse é o setor que mais recebe emendas (ao menos 50%, como prevê a lei), também é o mais estudado. Uma pesquisa do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) analisou os recursos distribuídos à atenção básica de 2018 a 2022, e depois em 2023, cruzando-os com diversos indicadores.
A conclusão foi que as verbas tendem a fortalecer municípios com estruturas já existentes e melhores índices de saúde: as cidades com cobertura completa de atenção básica, por exemplo, receberam R$ 62 por habitante naquele ano, contra R$ 21 do grupo com cobertura baixa ou muito baixa.
O QUE AINDA PRECISA DE EVIDÊNCIAS
EMENDAS DE FATO AJUDAM A ELEGER POLÍTICOS?
Diversas pesquisas já tentaram responder a essa pergunta, mas não chegaram a um consenso: indicaram efeito eleitoral "negativo", "nulo", "positivo relevante" ou "positivo limitado". Em 2017, um artigo publicado na revista científica da Unicamp procurou superar as limitações metodológicas desses estudos.
Os pesquisadores então concluíram que, embora as emendas individuais gerem votos aos deputados, elas não são o principal instrumento para a reeleição. Além disso, mostraram que as únicas emendas que garantem resultados são as executadas por prefeituras, especialmente quando prefeito e deputado são do mesmo partido.
Essas análises, porém, foram feitas antes da explosão dos repasses e do surgimento das "emendas Pix", em 2019, que mudaram a lógica do jogo e podem ter influenciado ainda na reeleição de prefeitos. Um levantamento da Folha mostrou que 98% dos prefeitos mais turbinadas com verbas se reelegeram em 2024.
COMO ELAS AFETAM A RELAÇÃO ENTRE EXECUTIVO E LEGISLATIVO?
Essa é outra questão muito explorada. Há certo consenso de que a obrigatoriedade das emendas, desde 2015, afetou o presidencialismo de coalizão. Uma tese de doutorado de Rodrigo Faria (USP, 2023) aponta maior dificuldade para o presidente formar maiorias, aumento nos custos de governabilidade e na pressão por cargos.
O Ipea, porém, pondera que ainda não está claro o tamanho da "perda da moeda de troca" do governo. "Uma série de estudos mostra que o Executivo condicionava a liberação do recurso ao apoio às políticas. É uma tese, [...] mas há um debate sobre o quão determinante era", como afirmou Acir Almeida, técnico envolvido no trabalho ?que pretende aprofundar nesses aspectos.
A pesquisadora Maria Dominguez cita como exemplo um estudo da Uerj que não identificou relação clara entre o momento da execução das emendas e o apoio dos deputados a projetos governistas, de 1996 a 2010. Ela lembra ainda que a distribuição de emendas antes atendia a interesses partidários: "Será que o uso hoje é mais individualista?"
QUAL É O EFEITO DAS EMENDAS NA VIDA DA POPULAÇÃO?
É aqui que aparece um dos poucos estudos favoráveis (parcialmente) às emendas. Um prestigioso artigo publicado em 2018 na revista de Oxford concluiu que municípios que receberam mais repasses por mais tempo, entre 1999 e 2010, tiveram melhoras substantivas em índices sociais e econômicos.
No entanto, esses efeitos não se sustentaram ao longo do tempo, já que a distribuição seguiu interesses eleitorais dos parlamentares, e não necessidades locais. Novamente, essa análise abarca um período em que os valores eram irrisórios, e também os examina de forma total, sem detalhar em que foram usados.
Ainda não há evidências sólidas para saber se as emendas são mais ou menos eficientes que os investimentos diretos do governo, por exemplo. Um relatório da CGU (Controladoria-Geral da União), divulgado em novembro a pedido do STF, mostrou que só 11% das obras com emendas de comissão e relator foram concluídas nas dez cidades mais beneficiadas entre 2020 e 2023.
Também faltam estudos que avaliem os impactos não apenas em indicadores de saúde, mas em áreas como educação e trabalho. E que verifiquem se essa forma de distribuição dos recursos, desigual, ajuda ou não a compensar as desigualdades regionais históricas no acesso a serviços. O Ipea promete aprofundar nessas questões.
