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Depoimento de Iacyr Anderson de Freitas
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Chego enfim a Juiz de Fora. Conhe?o o inverno e sua chuva mi?da.
Mi?da e intermin?vel. O passo domado do Paraibuna, a Rua Halfeld, o morro do
Imperador, o molde grave dos casar?es do Bairro Granbery, o tanque de guerra
que ainda sitiava, na pra?a deserta, o cad?ver cujo nome recusamos. Cujo
nome era nume e n?mero: 1964. Conhe?o ruas vincadas no asfalto. At?
ent?o, para mim, asfalto era coisa estradeira. Como um tapete que indicasse,
de soslaio, dist?ncias superlativas. N?o prestava bem para dividir
vizinhan?a. Depois descobri que fazia sentido. Que era de asfalto tamb?m o
terreno entre uma porta e outra, entre os c?modos de um mesmo apartamento,
entre as pessoas que por ele transitavam. Era de asfalto a dist?ncia entre
palavra e gesto, entre um afeto e sua louca aus?ncia de resposta. Ingresso numa cidade que tamb?m estava de mudan?a. A terra que perdera seus
pianos perdia agora, sem pesar, seu passado. Palacetes, casar?es e
casebres voltavam ao p? original. Onde outrora recitais dom?sticos,
britadeiras e tratores maceravam, sem cessar, o morro do Imperador, o morro
da Gratid?o, a encosta de S?o Bernardo: m?sica demudada. Usina de marmelos: primeira hidrel?trica da Am?rica do Sul. Cortadas
as linhas de transmiss?o, permanece ? deriva no oceano de Minas. Um bra?o
do Paraibuna agarra-se ao casco do velho pr?dio. Toda a constru??o lembra
antes uma casa-comum, um avesso dejet?rio. Latrina que retirasse das ?guas
um min?rio de luz e ramagem. Maquin?rio aposentado, enfim, e a energia do
lugar n?o aquece mais a cidade. Fica por ali, entre as pedras, ao lado do
rio que segue desfiladeiro abaixo. Na margem direita do rio que morre. Sozinha, matutando. Italianos, libaneses, s?rios, alem?es, portugueses, africanos, chineses,
espanh?is, coreanos. Uma cidade feita de cidades que fugiram. Em
mosaico. Aluno aqui, meti no embornal, a custo, essa deliciosa did?tica da
diversidade. Uma parte de qualquer cidade fica sempre submersa. Sempre ? margem da
hist?ria. Olho a Cia. T?xtil Bernardo Mascarenhas, a Cia.
Pantaleone Arcuri, os sobrados suntuosos, um ou outro pr?dio comercial do
velho conjunto da Pra?a da Esta??o. Nada resta, no entanto, da Vilagem
da Col?nia Dom Pedro II e das demais vilagens. Nenhum registro f?sico. Nenhuma lembran?a do percurso oper?rio e escravo por estas terras, da
"escritura dos escassos", do trabalho infantil que me chega assim queimando
na forja viva de velhas fotografias. Implac?vel, o patrim?nio industrial
demite da Hist?ria, por fim - e sem justa causa -, seus empregados.
Das poucas coisas de valor que tenho em meu curr?culo, sublinho
particularmente as amizades que Juiz de Fora me concedeu. Fernando
Fiorese, Edimilson, Ruffato, Sanglard, S?rgio Kleinsorge, Z? Santos,
Polidoro, Mutum, Luizinho Lopes, Breno Chagas, Mary e Eliardo Fran?a e
muitos outros da irmandade. N?o posso me esquecer aqui, ? claro, de Ruy
Merheb. Certo dia, numa mesa de bar, Eliardo Fran?a me confia uma frase
lapidar do Ruy: "Juiz de Fora foi para o s?culo XIX o que Ouro Preto foi
para o s?culo XVIII". Talvez seja esse o mote da declara??o de amor de
Manuel Bandeira. Declara??o que, infelizmente, a cidade n?o soube ou n?o
quis compreender. Numa fachada do Po?o Rico, num resto de nome que ? o Alto dos
Passos, nos belos casar?es da Rua Esp?rito Santo, nos locais mais
estranhos e inesperados, a velha Juiz de Fora, a Juiz de Fora arquet?pica me
toma. Em mim ent?o se acende, inteira e nua: esse era o casario que Nava
guardou no seu ba? de ossos, esse o caminho que levava ? casa de Lindolfo
Gomes, com esta coluna o menino Murilo deve ter mantido um dedo de prosa. Aqui, exatamente neste lugar, Belmiro Braga colocava o busto de
Oscar da Gama a par dos burburinhos da terra. Bilac ca?ou
esmeraldas nesta pra?a. Jos? Freire e S?lvio Romero
cruzaram este p?tio de pedra. Sentaram-se ali. Fazia frio ent?o. O sol
vazou por aquela janela. Al?m dos amigos, Juiz de Fora me deu tamb?m, naturalmente, alguns poemas. A
imagem de um milico na pra?a da Escola Normal, pegando em armas contra o sol
in?til de uma tarde domingueira, me trouxe "O soldado" :
N?o h? trincheiras, Desarma as flores Guarne?o a aus?ncia do embate. seu perfume ? minha mortalha Estou sozinho de mim As aves me fitam Um santu?rio sem grandeza, A quem protejo A guerra n?o veio. O sol n?o me defende Os passantes giram: decerto Guarne?o o monumento A primavera escapa O monumento monta guarda Sozinho
O testemunho de uma chuva colossal sobre o dorso do mirante de S?o
Bernardo, sacudindo a cidade qual um len?o, plantou na minha
bibliografia "Uma ?rvore", poema que dediquei a outro amante de Juiz de
Fora, o grande amigo e escritor Jos? Afr?nio Moreira Duarte: A cidade ? deriva, Casas com ?ncoras nos batentes. Uma densa parede sela a vista. Mesmo a topografia se curva Alheia ao desespero, Impass?vel em sua met?fora, entregue estar na chuva, sob o jugo,
Guarne?o os ?ltimos dias
nessa pra?a.
morteiros, sangue,
apenas um vento antigo
desarma meus fuzis.
e o amor dos recrutas
no gin?sio em frente.
A aus?ncia que informa
todo embate
e a aus?ncia mesma,
imensa
nesse parque.
Atiro contra o aceno da noite,
o assalto das aves, esse perigo
que desce das escrituras,
mas inexisto
como a guerra:
desde o princ?pio.
e de meus ex?rcitos.
Sozinho do universo inteiro,
das reparti?es,
dos prost?bulos, das igrejas.
com desprezo?
Desconhe?o.
Velo um santu?rio
perdido de seu deus de origem.
aberto ao esquecimento da tarde.
das armas que me deram?
O amor perdeu-se
e meus ex?rcitos buscam registro
nas escolas p?blicas.
do assombro de n?o ser,
n?o me defende dessa hora
em que tudo
? escasso e fere,
em que as reparti?es est?o fechadas
para o abra?o.
fiquei mais ermo e urze.
Decerto
lavraram em ata
meu desconsolo.
de meus dias.
dos cantis,
foge ? artilharia inimiga.
em meu corpo,
abre trincheiras
nos ossos, lanha
o relvado
do rosto.
guarne?o a pra?a
que me espreita
de seu posto.
A ?nica imagem pessoal:
aquela ?rvore sob a chuva,
impass?vel e dura.
cortinas alvas avan?ando mais e mais
para a noite, por duas semanas
- e nenhum azul, nenhuma r?stia
de luz ou lume.
Lodo, lixo, limo.
A paisagem come?a a empalidecer.
Mal se adivinha a montanha ao lado.
As ?guas tracionam terra e c?u.
Agora tudo comp?e
uma irmandade
sem contornos.
O que era realidade
vai girando
sua manivela.
ao temporal, sem pressa.
apenas aquela ?rvore.
? total condena??o:
testemunhar a tudo,
avessa ao c?u e ao ch?o.
Outros poemas nasceram do mesmo tronco. Alguns me sondam ainda, de esguelha. Certo dia encontro, num restaurante, uma antiga foto da ?rea central da cidade. Uma foto feliz: l? estava a grandeza de uma manh? extraviada h? cem anos. Uma manh? que houve e que, como diria Gullar, n?o mais nos ouve. Que a custo resiste, acesa ainda, sobre o papel ceifado em s?pia: representa??o corporal do invis?vel. Amanhecendo. Eternamente amanhecendo. A esse alumbramento devo o parto do "Vig?simo terceiro mirante":
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N?o olhes. Uma t?o grande beleza jamais poderia acabar assim. Se mesmo Tr?ia n?o teve defesa, como entender, como explicar tal fim? N?o olhes nunca esse velho retrato. Nele, do que h? de vida te compenses em testemunho, fulgor sem recato da grandeza que esplende os seus pertences. Tudo passou. Resta uma n?usea agora. Uma lembran?a que estremece as lou?as, o ar, a pr?pria vis?o que se evapora. Teu grande assombro n?o cabe nas bolsas da inf?ncia. Na esta??o, divide a aurora o mesmo grito de outrora. N?o o ou?as.
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Sim, ? melhor n?o ouvir, na Pra?a da Esta??o, o casario que aflora com seu canto ser?fico de mil sereias conjugadas. Canto pleno, de orfandade e desapari??o.
H? cidades que n?o v?m ? tona. Ficam em n?s, eternamente submersas. H? lugares para a alma somente. Para o soldo e o sonho. H? quintais cujos frutos fendem o fel com sua ?ncora. Mapas que se movem pelo mobili?rio do corpo adentro. S?o a mem?ria viva do que n?o vivemos. Cidades sibilantes, submersas.
Como ia dizendo: assalta-me sempre a imagem da antiga cidade. Da que n?o conheci e que, estrangeira, me habita. Ela passeia em mim seus bondes e ruas. Seus parques e jardins sobrenaturais. Assenta em mim sua geografia. Arreda os outros lugares todos da mem?ria. Talvez tenha sido por isso que, engenheiro do ar, fundei numa p?gina qualquer de A soleira e o s?culo, por entre rios que me espreitavam da inf?ncia, "Uma cidade":
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a cidade que celebro nunca me soube nela me banho nos seus rios sem fonte ou foz nos sobrados que correm sobre trilhos (verticais na carne e no esp?rito) no cheiro morto do milho do feij?o bravo com cravo e couve celebro em mim
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Iacyr Anderson Freitas
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