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Carnavais juizforanos...


O Brasil ? conhecido como o pa?s do carnaval, por seu esp?rito de molecagem e malandragem, mas, no fundo, possui uma grande complexidade e uma grande sabedoria que se utilizam das festas reparadoras carnavalescas para repor as energias perdidas no cotidiano rotineiro.

A origem do carnaval ? controversa: uns associam aos cultos feitos pelos antigos para louvar as boas colheitas agr?rias, h? 10 mil anos antes de Cristo; outros aos festejos eg?pcios em homenagem ? deusa ?sis e ao touro ?pis, alguns mais ?s celebra?es gregas pela volta da primavera e pelo culto ao deus Dion?sio e ainda outros ?s saturnais e lupercais romanas em louvor a Baco, a P? e a Saturno. Uma coisa ? comum a todos: o Carnaval tem sua hist?ria, ligada a fen?menos naturais ou astrol?gicos.

A palavra carnaval tamb?m apresenta diversas vers?es: pode derivar de carne vale (adeus carne), ou de carne levamen (supress?o da carne), o que remete ao in?cio da quaresma, que era, em sua origem n?o s? per?odo de reflex?o, mas ainda de priva??o de certos alimentos, entre eles, a carne. H? tamb?m outra interpreta??o para a etimologia da palavra que derivaria de currus navalis (carro naval), express?o anterior ao cristianismo e que se baseia nas divers?es em cortejos mar?timos.

O que se sabe, de fato ? que o carnaval ? uma festa popular, realizada na pra?a - centro irradiador e convergente - apresentando car?ter l?dico, um aparente descompromisso e uma ruptura hier?rquica. Carnaval ? momento de transgress?o atrav?s do dom?nio da invers?o e que se manifesta em todos os sentidos, como infra??o do poder, pois o "rei" ? destitu?do de seu cargo e, em seu lugar, entronado o an?nimo; como viola??o dos valores, pois, onde reinava a ordem, passa a imperar a desordem; como desmistifica??o da identidade pelo uso das m?scaras e pelos travestis. O estilo, o espa?o e o tempo tamb?m s?o subvertidos = passa-se do c?mico ao s?rio e do s?rio ao c?mico sem qualquer impedimento, o coletivo prevalece sobre o individual e o anacr?nico rompe o cronol?gico.

O carnaval constitui-se numa est?tica do ac?mulo e da ambig?idade dentro de uma l?gica pr?pria que se afasta da racionalizada para se aproximar do sonho, do pesadelo, da inconseq??ncia (conseq?ente). Por isso h? a jun??o dos opostos, a ambig?idade, que se expressam, a primeira, atrav?s da fus?o sagrado e profano, alto e baixo, sublime e insignificante, sabedoria e tolice, morte e renascimento, lei e caos e a segunda que promove a relativiza??o onde ? poss?vel se perceberem o inconseq?ente e o conseq?ente, o c?mico e o s?rio. Enfim, s?o oposi?es que n?o se excluem, nem se confundem.

Segundo Bakhtine, "ato carnavalesco" ? um movimento fundamental de destrona??o/entrona??o, um poder constitu?do substitui-se por outro, numa ruptura e invers?o de valores totais. Da?, a no??o de efemeridade como realidade desse rito cosmog?nico. Revela a tens?o constante entre a vida e a morte, isto ?, ? destrona??o (morte) corresponde nova entrona??o (vida). Dessa maneira, o carnaval aparece como caos germinativo de nova vida, como sua fecunda??o. O rito social do carnaval tem sentido cat?rtico: pular, enlouquecer, embriagar-se por tr?s dias para suportar os outros 362. Enfim, se a lei foi destronada, o an?nimo entronado, se a raz?o foi substitu?da pela loucura, toda trajet?ria do sentido sofrer? esse deslocamento.

Por todos esses motivos, seria uma festa de inclus?o social. Mas, atrav?s dos tempos, com a for?a da economia dominante, vai fugindo desta sua caracter?stica democr?tica.

Paulino de Oliveira, o cronista da cidade, explora a import?ncia do carnaval para o juizforano, ao relembrar um amigo:

Idade : 33 Carnavais

(..) Moacir de Brito foi meu amigo. Com ele e com sua fam?lia convivi durante muito tempo. Contava a idade pelo carnaval. Uma vez, fez a sua ficha para um amigo que lhe apresentei: "Nome, Moacir Coelho de Brito; idade, 33 carnavais; profiss?o jornalista carnavalesco; filia??o, maestro Euclides de Brito, carnavalesco tamb?m, e Ormenzinda Coelho de Brito, modista, criadora de fantasias carnavalescas". Creio que morreu naquela idade.
Todos n?s, seus amigos, o admir?vamos, mas ningu?m o admirava mais do que seu sobrinho Mario Hel?nio de Lery Santos, que era um fedelho quando ele morreu.

Para Pedro Nava, os festejos carnavalescos sempre estiveram ligados ? cultura da cidade, chegando a torn?-la uma das mais importantes do pa?s. Em sua ?poca, estavam em seu auge, o que o fez descrev?-los em compara??o com as enchentes do rio:

?gua n?o era s? de chuva e de enchente. Mais abundante era a dos entrudos. Carnaval. Passavam uns escassos mascarados, domin?s de voz fina, diabinhos com que o Benjamin Rezende se divertia arrancando os rabos e quebrando os chifres. O Paulo Figueiredo, encantando minha av? com o seu Pierr? recamado de lantejoulas. Os primeiros lan?a-perfumes - Vlan e o Rodo. Mas o bom mesmo era o entrudo. Havia instrumentos aperfei?oados para jogar ?gua como os rel?gios, assim chamados porque esses recipientes imitavam a forma de um rel?gio fechado com dois tampos met?licos flex?veis que, quando apertados, deixavam sair um delicado esguicho de ?gua perfumada.

Ba? de ossos, p.261


Jos? Alves J?nior foi o compositor carnavalesco que fez a letra da marcha n?1, do Rancho "N?o Venhas Assim Que N?o Te Recebo" e da marchinha que, no carnaval de 1935, saiu vitoriosa, com o primeiro lugar. Em ambas, verifica-se a preocupa??o em reverenciar a cidade, pontuando sua diferen?a:

Alterosa

(Sauda??o a Juiz de Fora)
Vamos saudar-te neste dia
Esta cidade ideal,
Para maior alegria
Das festas do Carnaval.

(...)

(Marcha n.1 do Rancho Carnavalesco
"N?o Venhas Assim Que N?o Te Recebo")


Juiz de Fora

(...)
De S. Mateus ? cidade
Do Botan?gua ao Z? Weiss
Juiz de Fora, na verdade,
Foi sempre a melhor cidade
De toda a Minas Gerais...
Coro:
Minha cidade no "barulho"
? meu orgulho,
Sabe mostrar seu valor...
Palpita sempre de alegria
Na folia,
Pois o meu povo ? do amor...Bis
(...)
Tem os bondes da Mineira,
Tem pol?cia especial,
Anda sempre na dianteira
Que ela foi sempre a primeira
Nas festas de Carnaval...

(Marcha para o Carnaval de 1935, classificada em 1? lugar,
com m?sica de Reynaldo T. de Andrade)


Carlos da Rocha relembra os velhos carnavais juizforanos:

O carnaval era uma festa popular aut?ntica, vinha precedida de duas ou mais batalhas de confete. Eram elas realizadas nas ruas Halfeld e Marechal Deodoro, tamb?m nos bairros de Manuel Hon?rio e de S?o Mateus. Essa batalhas eram previamente anunciadas pelo Z?-Pereira, o ent?o arauto da aproxima??o das festas momescas. (...) Os blocos, Ranchos e Clubes desfilavam garbosamente pelas ruas centrais, eram eles: O "Quem-Pode-Pode"; "Aventureiros"; "N?o Venhas Assim"; "Quem s?o Eles?"; "Os Rouxin?is'' e outros de menor express?o. Os Clubes com suas s?tiras oportunas, n?o perdoavam os pol?ticos e administradores. Eram eles: "Os Grafos" e "Planetas". O povo ao longo dos passeios aplaudia-os com del?rio.

Maria do Carmo Volpi de Freitas que acaba de nos deixar em 22 de janeiro, no conto "Na fila do Bradesco", entroniza a figura de um falso deus que tem seu reinado momesco de tr?s dias:

Para o Carnaval, tr?s fantasias vindas diretamente do Rio de Janeiro. Extraordin?rio gozador. As mo?as e as senhoras que iam admir?-lo, marchando ele de uniforme branco, gal?es dourados, rebrilhando ao sol, olhar firme de condor, n?o lhe escondiam o interesse que lhes despertava. Na pra?a, cercavam-no afoitamente, como a um her?i. As letradas chamava-no de J?piter Capitolino, ou de Zeus Redivivo. Por isso mesmo, empobreceu r?pido. Morreu sem gl?rias.

O texto que Romeu Viana elabora em homenagem ? cidade que ama o Carnaval - festa do povo quando se invertem as hierarquias e novos valores s?o estabelecidos, espa?o de recomposi??o das energias perdidas - permite mais uma vez o alcance do espa?o da mem?ria:

Ah, Os Velhos Carnavais!

Na avenida Rio Branco, todos os anos, barulhentos, os Turunas, a Feliz Lembran?a, as Dom?sticas de Luxo, o Partido Alto, a Juventude Imperial, e outras Escolas de Samba da cidade, com seus cortejos longos, ao som de ritmada cantoria e o esplendor de roupagens reluzentes, imperiais! O homem moderno tamb?m vive a exuberan?a das festas hist?ricas, cujas alegrias rememoram acontecimentos singulares, perdidos nos escaninhos da Hist?ria dos povos... Ah, os velhos carnavais de Juiz de Fora! Aquela loucura coletiva! Aquela eclos?o popular irrefre?vel, que vencia todas as crises, como um paliativo dado pela bondade divina! Mas, como surgiu o Carnaval, essa festa sat?nica que agita todos os cora?es do Brasil ? ! (...) Juiz de Fora teve seus grandes e inesquec?veis carnavais no passado! Ah, como me lembro, ainda menino, daqueles desfiles in-termin?veis! Pendurada nos bordos dos janel?es da rua Imperatriz (Mal. Deodoro), assistia, deslumbrado, ? passagem dos "Grafos", dos "Rouxin?is", dos "Quem S?o Eles ?", do "Quem Pode, Pode"(Pep?), do "N?o Venhas Assim, Que N?o te Recebo" e tantas outras sociedades, menores. Precediam-nos os corsos alongados, que tomavam a rua Di-reita, Halfeld e Imperatriz, volteando, seguidamente, por muitas horas.

Kleber Halfeld n?o p?de deixar de relembrar os carnavais quando recomp?e o mosaico de Juiz de Fora:

E quantas coisas mais compondo os flagrantes juiz-foranos!
As sess?es femininas do Central e do P?lace.
Os bailes elegantes do Clube Juiz de Fora.
O "footing" da Rua Halfeld.
As batalhas de confete promovidas pelo Curi, - o foli?o.
O corso no carnaval.

Maur?cio Hugo Gama Menezes, em "O Carnaval", traz as reminisc?ncias das folias de outras ?pocas que completam o ?lbum da cidade, hoje modificado, embora o carnaval seja ainda reverenciado por seus cidad?os que fazem dele um instrumento para contar a hist?ria de Juiz de Fora, nas Escolas de Samba. A dial?tica conduz a narrativa sempre alternando o que foi e o que ?, numa perspectiva do que ser?:

Sou saudosista, n?o nego, daqueles de carteirinha e tudo. Mas n?o sou imune ?s inova?es, desde que elas estejam em concord?ncia com os valores estabelecidos. Quando vai se aproximando a ?poca do Carnaval sou invadido por uma nostalgia extrema. Exatamente porque n?o ou?o mais as m?sicas t?picas do reinado do Momo, apenas a "ax?-music", que continua a imperar at? nos dias de folia.(...) A produ??o musical carnavalesca local tamb?m era grande, existindo at? uma Associa??o dos Compositores Carnavalescos de Juiz de Fora, que anualmente promovia um concurso para se escolher as melhores, realizado no antigo Cinema Gl?ria.(...) Fantasias prontas, lan?a-perfume, serpentina e confete comprados, os foli?es viam chegar o t?o esperado momento do tr?duo momesco, que na realidade eram quatro dias, porque o s?bado tamb?m contava. A partir da?, estavam sob o bast?o do Rei Momo, Primeiro e ?nico, em Juiz de Fora, encarnado pelo gordo Jambica, que ao morrer, passou o comando para o pintor Cl?rio Pereira, o Pimpinela, que reinou por d?cadas. Todo o centro comercial, compreendido pelo tri?ngulo Avenida Get?lio Vargas, Avenida Rio Branco e Rua Esp?rito Santo, tendo no meio as ruas Halfeld, Marechal Deodoro, Floriano Peixoto, S?o Jo?o, Santa Rita e Batista de Oliveira, as galerias que as interligavam, era tomado por uma multid?o incalcul?vel, alimentada de gente pelos ?nibus e bondes que chegavam dos bairros a cada minuto. Ali se viam fantasias completas, unit?rias ou em conjunto, bloco-de-sujo, blocos de gatinhas, homens e garotos solit?rios com apenas um cocar de ?ndio ou um colar de havaiano. Outros, ainda em dupla, como Noronha e Lambari, satirizavam pessoas que eram not?cia na ?poca. Os ginastas Paulinho, ?talo e Ervilha, faziam "paradas", demonstrando perfeito equil?brio e for?a. Isso durava praticamente as 24 horas do dia.

Carlos Roberto Pimenta, para retratar Juiz de Fora, imagina uma hist?ria em que a personagem principal - a Noite - ? raptada e, em sua procura, aparecem dois detetives que percorrem os espa?os mais significativos, em uma rememora??o on?rica e atemporal. O t?o famoso carnaval juizforano e seu marco dos desfiles das escolas de samba comp?em a mem?ria reconstru?da:

Era uma sexta-feira, dessas do m?s de fevereiro, onde se respira carnaval por todos os cantos da cidade. O coment?rio geral versava sobre o apote?tico desfile que a Feliz Lembran?a estava prometendo com o enredo "Mascarada Veneziana", sob a coordena??o de Jos? Carlos Lery Guimar?es e Nelson Silva, dois ?dolos que a Noite sempre fez quest?o de prestigiar em seus momentos de cria??o, que n?o foram poucos, principalmente no Barrac?o da Usina de A?car, no Largo da Esta??o.


A jornalista Christina Musse afirma, lembrando:

N?o sou daqui, sou "estrangeira", mas amo a cidade e o seu povo. Lembro-me das refer?ncias familiares aos passeios de bonde, ao "footing" na rua Halfeld, ?s matin?s do Cine-Theatro Central, aos bailes de Carnaval do Clube Juiz de Fora. (...) J? quase adulta, n?o consigo me esquecer da Sorveteria Apolo, do velho Bar Redentor, do coquinho do Gaud?ncio, dos bailes de formatura, dos ensaios para os desfiles de Carnaval, na quadra da Juventude Imperial. E olha que eu nem morava aqui...