Polifonia das ?guas

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Polifonia das ?guas
Daniela Aragão 8/07/2014

Polifonia das águas

Sou do signo de peixes, será que vem daí o meu fascínio pelas águas, mais precisamente pelas águas do mar? Mar de Caymmi : "o pescador tem dois amor/ um bem na terra, um bem no mar", "O mar quando quebra na praia é bonito é bonito", mar de Cacaso: "Quando o mar/quando o mar tem mais segredo/ não é quando ele se agita/ nem é quando é tempestade/nem é quando é ventania/quando o mar tem mais segredo/é quando é calmaria", mar de Adriana Calcanhotto: "Mais uma vez/vem o mar/se dar/como imagem/passagem/do árido à miragem/Sendo salgado/gelado/ou azul/Será só linguagem", mar de Sérgio Natureza e Délia Fischer: " Águas de aluvião/Levando amor pro mar/Águas que vão alagando as margens/Dessa paixão/Rio do coração/Vermelho, vivo e são/Para adubar o solo tão seco da ilusão".

Em minhas contínuas peregrinações em busca de discos, cantores e composições que me arrebatem, encontrei o primoroso CD "Presente", da cantora, compositora e pianista Délia Fischer. Ouvi-lo é comungar com um som de altíssimo requinte, música para acariciar e elevar a alma e os sentidos. "Presente" faz uma saudação às belezas da natureza, ousaria dizer que trata-se especialmente de uma poética musical das águas, elemento sublime que se sobressai por seus movimentos ondulantes que se desvelam em inusitados e coloridos vôos de improvisos jazzísticos.

Num país em que suas exímias pianistas optaram por fazer carreira no exterior a exemplo de Eliane Elias, é um presente encontrar uma da estatura de Délia Fischer que extrai de nossa terra substrato para a sua criação em incessante frescor. Esta artista administra com absoluta propriedade seu legado que incorpora a aprendizagem clássica e jazzística a uma pitada de swing bem brasileiro, fazendo aflorar um trabalho com uma dicção original, mas sem perder os laços com a sonoridade contemporânea.

Antes de imergir nas águas para nos presentear ela adentrou na densa obra de Egberto Gismont e gravou um disco inteiramente dedicado a ele. Sem excessos que demonstrem qualquer ínfima tentativa de suplantar a essência do engenho Gismontiano, Délia recriou uma arquitetura belíssima que pode ser escutada como referência para aqueles que nunca ouviram o compositor consagrado ou rotulado por classificações herméticas. Como é bonito ouvi-la tocar e cantar "Água e vinho" com sua levada suave, delicada e precisa que ressalta o lirismo dos versos de Geraldo Carneiro: "A lua morta, pedra morta, ventania e um rosário sobre chão/E um incêndio amarelo e provisório consumia o coração/E começou a procurar pela fogueiras lentamente/E o seu coração já não temia as chamas do inferno/E das trevas sem fim. Haveria de chegar o amor". A leitura de Délia cheia de luminosidade para a instrumental "Palhaço" é pura viagem lírica e lúdica que nos eleva ao mais amplo e alto circo de magia sonora: "Nesse meu disco é um Egberto muito solar no sentido de que remete a uma época em que cresci ouvindo a música dele. Eu queria dar uma conotação muito feliz por ter encontrado na vida a música dele. Nos arranjos quis ressaltar essa jovialidade, essa alegria, esse sabor. O Egberto é uma personalidade incrível, forte e não tem sentido gravá-lo se não for com um olhar pessoal".

Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.