Beatriz Azevedo abraça o sol
Beatriz Azevedo abraça o sol
A palavra elevada às suas múltiplas possibilidades poéticas é alvo de um minucioso trabalho desenvolvido não exclusivamente por Calcanhotto, mas também por outros de sua geração como Arnaldo Antunes, Zeca Baleiro e Beatriz Azevedo. Certamente poucos ouvintes tiveram acesso ao trabalho de Beatriz, pois ele não é veiculado pela grande mídia. Tomei conhecimento da existência de Beatriz Azevedo por acaso, quando me deparei numa livraria com o seu ótimo CD Bum bum do poeta. Confesso que fui seduzida de imediato pelo atrativo da capa, que em fundo inteiramente vermelho mostrava sobreposta em destaque a foto da artista em pose a là Marlene Dietrich em O anjo azul.
Cantora, compositora, poeta e performer, Beatriz Azevedo é uma artista que celebra a "tradição da invenção" ao seguir a linha evolutiva do riso e da alegria transgressora e erótica de Gregório de Mattos, Oswald de Andrade e Zé Celso. A palavra, que sob a mira dessa artista, é alvo de depurada lapidação, desponta ácida, irônica ou eroticamente insinuante, como em Querelle, canção composta por ela, inspirada no filme do excêntrico cineasta alemão Rainer Fassbinder, que adaptou para o cinema a obra homônima de Jean Genet: "Querelle eu quero sua pele/Quero querer Querelle/Em mim sua boca mais que a de Marilyn seu corpo forte/Quero gemer como James Dean/Numa noite triste tudo que existe tem um fim/Tem um filme".
Alegria, disco primoroso lançado pela gravadora Biscoito Fino, dá prosseguimento a pesquisa estética e literária evidenciada em Bum bum do poeta, mas com o acréscimo de um evidente amadurecimento revelado no desempenho sofisticado e preciso da direção musical e dos arranjos do pianista Cristóvão Bastos. Gravado entre São Paulo, Rio de Janeiro e Nova York, Alegria traz a marca da diversidade correspondente ao conceito proposto por Beatriz Azevedo, que em sua verve cosmopolita jamais perde os laços estreitos com as raízes nacionais. Apropriando-se do impulso deglutidor do antropófago Oswald de Andrade, Beatriz nomeia no encarte todas as devorações realizadas nas músicas. Põe música em Coco de Pagu, poema do modernista Raul Bopp, dedicado a musa do movimento antropofágico Patrícia Galvão, a Pagu: "Devoração de Coco e Embolada com Patrícia Galvão. Devoração de Raul Bopp, poeta da Amazônia. Devoração de Augusto de Campos que nos deu este poema de Bopp no seu Pagu vida-obra."
Alegria, faixa inaugural que dá título apropriado ao CD, é uma parceria entre Beatriz Azevedo e Vinícius Cantuária, músico brasileiro radicado nos Estados Unidos há mais de vinte anos. Alegria traduz o estado de espírito verde amarelo através da devoração miscigenada de Cesária Évora, Ernesto Nazareth, Beethoven e Shiller: Segundo a cantora: "O mote da alegria tem a ver com os ritmos brasileiros, ela é uma característica não só minha, mas da história do Brasil".
Speak Low, antológica canção de Kurt Weill e Lotte Lenya, recebe uma interpretação magistral, em ritmo de maracatu a música ganha o toque afro-brasileiro do berimbau enriquecido por um naipe de sopros e alfaias bem graves. Esta canção explicita a habilidade com que Beatriz Azevedo devora, desconstrói e reconstrói a cultura alemã que engloba Nietzche, Brecht, Peter Stein, Pina Bausch, Sacha Waltz e Fassbinder. Envolvendo sensualidade e fragmentos de sonhos cinematográficos Bertollucianos-Fellinianos-Kusturicanos, a atmosfera sonora criada por Beatriz Azevedo nos envolve tão sedutoramente que às vezes parece que retrocedemos a um cabaret parisiense. O diálogo com a cultura francesa é enternecedor em Savoir par coeur, um delicado souvenir poético: "Si je sais par coeur/Le rythme de ton coeur/Tu sais pourquoi/La musique de mon coeur".
Beatriz Azevedo em Alegria presenteia os ouvintes com poesia, bom gosto e criatividade. É uma alegria saber que em meio a tantas banalidades existe uma artista como Beatriz. À massa que ainda comerá de seus biscoitos finos ela entoa: "Mas eu vou fazer tudo que eu quero, bem do meu jeito. E deixa prá lá essa gente com despeito."
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Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.
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