Blue Skies, de Marina Lima
Blue Skies, de Marina Lima
"Seu disco soa um tom - ou vários - abaixo dos sons ensurdecedores deste Brasil instaurado, onde qualquer tentativa de reflexão é taxada de "baixo-astral", qualquer intimismo é considerado "depressivo". Um artista sempre é termômetro de seu tempo, e o disco da Marina revela com perfeição a face oculta de um país que não está tendo voz – essa voz das pessoas mais ou menos como a gente, um pouco acima da miséria, chegando à meia – idade, essa voz meio cansada, desiludida e muito assustada. Por trás das dores, sem medo de ser séria, a comovedora serenidade da "jovem senhora de passagem" pede que não tentem fazê-la feliz – ela aprendeu que o amor é bom, mas também dói demais sentir."
Recolhendo em minha casa alguns velhos jornais arquivados, encontro um recorte bastante envelhecido e amarelado, extraído da Folha de São Paulo de 1994. Nada mais nada menos que Caio Fernando Abreu, que em cinco parágrafos precisos e incisivos traça o panorama do Brasil sonoro "histérico" que despontava em meados da década de noventa.
Mais de uma década se passou e fico pensando que este texto poderia plenamente ser assinado hoje, se Caio ainda estivesse vivo entre nós. Num universo de "voices" proclamado pela mídia, toca-me uma saudade de vozes despretensiosas, se me faço entender, mais suaves, e que não tenham tanto comprometimento com virtuosismos e performances.
Saudade de Nara Leão, viva Rosa Passos, saudade viva de Marina Lima. A cantora, que durante a década de oitenta e início de noventa foi a elegante musa do Rio de Janeiro, em Ipanema, Gávea e Leblon, envelheceu e não desfila mais seu corpo dourado e belamente definido pelas praias, e nem solta mais sua voz pelas rádios. Hoje, ainda mais que ontem, gosto intensamente da elegância minimalista de Marina.
Em meio a performances expressionistas à la Ivete Sangalo, Daniela Mercury e Ana Carolina, contraponho meus ouvidos saturados de excessos à beleza do canto rouco de Marina. Como me acolhe, instiga e colore de poesia ouvir Marina cantando os versos de seu irmão, o parceiro, poeta e filósofo Antônio Cícero : "Eu tenho febre eu sei/É um fogo leve que eu peguei/Do mar ou de amar, não sei/Deve ser da idade". "O solo da paixão não dura mais que um dia/O suco, a polpa, o frêmito, a gota/Colherei esse dia na hora antes de acordar". Ouço Marina cantando e sinto saudade de certo ar de graça, leveza e sensualidade sugerida, que jamais perde seu prumo sofisticado e delicado.
Ouço Marina cantando e penso que a canção para ser bela não precisa ser interpretada aos gritos, que a voz em entoações sutis e suaves, é capaz de elaborar uma alquimia perfeita com a desenvoltura dos acordes. Ouço Marina cantando e sinto que o amor e a dor podem ser interpretados, até mesmo rimados, por meio de uma beleza insinuante e não desgastante. Ouço Marina.
Percorrendo a discografia de Marina, vejo o quão é acentuada a sua preocupação em imprimir em seus trabalhos um apuro estético-sonoro que ultrapassa significativamente o rótulo de roqueira. Marina gravou e compôs roques, mas sempre com uma concepção sonora requintada, que traz influências da música popular brasileira mais ortodoxa, da bossa nova e do jazz. É única, forte-frágil sua leitura de "Solidão", de Dolores Duran: "Eu quero qualquer coisa verdadeira/Um amor, uma saudade/uma lágrima, um amigo/Ai, a solidão vai acabar comigo". A acidez de roqueira impressa no entoar dos primeiros versos se funde com uma delicadeza softy num derramamento tocante, mas sem excessos. Há um frescor aparentemente tão sincero e espontaneamente lírico, aliado a um despudor erótico sem medos ou máculas, que faz de Marina um ser meio Sui Generis hoje em dia: "A melhor música é a cerebral. Mas não estou isentando a emoção dela. Os grandes matemáticos, quando criaram suas equações, devem ter tomado um porre durante uma semana. A música é calculada, com emoção e razão juntas. Não acredito em espontaneidade na arte. Não me interesso por isso. O meu caminho quem faz sou eu. Se vou ser mais popular ou menos, é outra questão".
Despontam filigranas de belezas no cantar de Marina, grávida de vida essa menina-mulher comunga com luzes e trevas, objetos e desejos: "Eu tô grávida/Grávida de um beija-flor/Grávida de terra/De um liquidificador/E vou parir/Um terremoto, uma bomba, uma cor/Uma locomotiva a vapor/um corredor". A energia acalorada abundante em canções mais ensolaradas como "Uma noite e meia" e "À francesa", alterna sua força com um estremecimento "tanático", com mais cara de inverno, cuja introspecção sofrida nas letras machuca aqueles que andam descompatibilizados com a vida. Marina tenta talvez oferecer um abrigo aos corações desabrigados, como em sua tocante interpretação de "Carente profissional", composição de Cazuza e Frejat: "Tudo azul/No céu desbotado/E a alma lavada/Sem ter onde secar/Eu corro, eu berro/Nem dopante me dopa/A vida me endoida/ Eu mereço um lugar ao sol/Mereço ganhar pra ser/Carente profissional".
Prevalece uma espécie de dor contida que subjaz e seduz, ternura azulada e dolorasamente pulsante de muitos céus que se anunciam em efêmeras promessas: "Blue skies/Smiling at me/Nothing but blue skies/Do I see /Bluebirds/Singing a song/Nothing
but/Bluebirds/All Day long". Nas palavras de seu irmão Cícero: "O todo, a arte de Marina, funciona como um espelho mágico, que nos devolve não a imagem da nossa realidade física ou psicológica, mas a força de sentimentos maravilhosos e obscuros, e de promessas de felicidade há muito dormentes em nosso coração".
Ouço Marina, que abre sutil e gravemente feridas com gotas de sangue misturadas a fluxos de luz. Uma fincada de veneno adocicado que deixa escorrer pétalas de rosas: "Veneno essa vida tão pouca e pequena/ Esses lábios tem todo o veneno/Que você ama e quer". Marina Lima embala minha noite de sábado com seu gosto agridoce de veneno cor de rosa.
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Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.