Com a benção de Dorival
Com a benção de Dorival
Tanto gostei da apresentação de Claudio Nucci, que fui ao lançamento de seu cd no extinto "Armazém Digital", no Rio de Janeiro, e voltei para casa com o repertório do show condensado no cd. Ouvi inúmeras vezes da primeira a última faixa, a cada audição impressionava-me mais a compreensão profunda que Claudio Nucci possui do universo Caymmiano. Uma simplicidade que suponho advinda de muito trabalho, aliado a uma sensibilidade de artista inteiramente entregue a verdade da criação. Nucci deixou neste seu primeiro álbum dedicado a Caymmi o registro de seu entendimento agudo, por isso muitas vezes alegre e doído da beleza profunda imanada em cada verso e nota do criador baiano.
Tive a honra e satisfação de entrevistar Claudio Nucci para minha coluna mensal no site acessa e ainda ganhei de presente a oportunidade de ouvir seu cd recém lançado, que novamente contempla o universo de sublimes canções do mestre Dorival Caymmi. Se o disco anterior já havia me impactado, este é o resultado emocionante e grandioso de um ourives da voz e do som, que mergulhou com intensa coragem e devoção na mais pura essência do criador Caymmi.
Em "Claudio Nucci revisita Caymmi", a simplicidade e o lirismo caminham de mãos dadas, inseparáveis, como nos versos pungentes de Juca Filho para "Da cor de algodão". Linda e luminosa celebração, que comunga num ágape cheio de molejo e swing, a chegada no céu do mestre baiano portador dos cabelos branquinhos e macios como uma nuvem de algodão: "De camisa listrada e violão/O meu samba mandou lhe chamar/O cabelo da cor de algodão/pé descalço na areia do mar/sereia vem no arrastão/ no seu colo sonhar faceira/gozando a canção praieira/ que incandeia o coração/e no céu da Bahia então/aquarela de som e sol/no dia que vem surgindo/ com a benção de Dorival".
Grande parte dos músicos que gravam Caymmi revelam a predileção por seu universo de canções praieiras, já Nucci neste disco deixa evidente sua destreza no trânsito pelas canções, que não se fecham exclusivamente no mundo dos mares, pescadores, jangadas e sereias. "Sargaço mar", pérola praieira Caymmiana, leva uma condução rítmica que retoma a força do legado africano nas congas, que evoluem em ondulações sonoras envolventes como uma espécie de mantra.
A voz de Nucci, de timbre muito belo e afinação precisa, demonstra sua sintonia ainda mais visceral com Caymmi. No álbum anterior ele manteve as composições num registro um pouco mais alto, conforme a tessitura de seu alcance vocal na época. Com a passagem dos anos, as notas mais graves chegaram com a naturalidade do transcorrer do tempo, o que lhe possibilitou cantar no mesmo tom de Caymmi, proporcionando a nós ouvintes uma sensação de cumplicidade plena entre intérprete e criador.
Nucci adentrou tão intensamente na criação do mestre, que o som peculiar do violão do compositor é revisitado em sua integridade: "Mantenho a organicidade do violão e voz e de maneira ainda mais radical. Percebi ao ouvir novamente o violão de Caymmi, que ele tinha uma afinação diferente. Todo violão é normalmente afinado, de baixo pra cima, (mi, si, sol, ré, la, mi). A afinação de Dorival era um tom abaixo disso (ré, la, fa, dó, sol, ré) então o violão soa mais grave, mais misterioso. Se é que existe, soa como um "violão barítono".
Ouço as canções e a força orgânica do som parece realizar-se bem ao meu lado, como se Nucci estivesse tocando aqui e agora. Pura beleza crua e cristalina, trabalho certeiro de um artesão de apurada sensibilidade minimalista, que incide no cerne da essência sintética e inigualável da criação Caymmiana. Voz, violão e percussão não excedem, nem carecem. Seguem na viagem sonora tão rica de lirismo, como na emocionante "Peguei um Ita no norte": "Peguei um "Ita" no norte/Pra vim pro Rio morar/Adeus, meu pai, minha mãe/Adeus Belém do Pará". Um disco de tão elevada beleza, com certeza traz a benção de Dorival que sorri no sorriso de Xangô.
- Entrevista com o desenhista Mário Tarcitano
- Entrevista com o compositor e cantor Carlos Fernando
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Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.