Entrevista com o arranjador Aócio Fl?vio Rego

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Entrevista com o arranjador A?cio Fl?vio Rego

Entrevista com o arranjador Aécio Flávio Rego


[COLUNISTA_NOME] 10/09/2020

Daniela Aragão: Quando e como apareceu a música em sua vida?

Aécio Flávio: O meu pai era escriturário e músico amador, tocava em banda de música no interior de Minas. Quando foi para Belo Horizonte, ele começou a integrar uma banda de baile e ele vivia ensaiando dentro de casa. Ele chegava da fábrica e ficava pelos cantos da casa tocando tudo quanto é pedaçinho de música.

Daí então passei a entender o que era partitura para orquestra.  Meu pai ficava procurando uma acústica boa nos cantos das paredes. Isso me marcou bastante. Um dia fui a um aniversário em que tinha um cara tocando “Baião Delicado”, fiquei impressionado, achei muito bonito aquilo. Mas o marco mesmo aconteceu quando eu descia a rua para ir para a escola e encontrei um mendigo chamado Raul,  ele mendigava tocando uma gaita de boca. Fiquei fascinado olhando aquele cara. Fiquei abismado como ele tirava música daquele pedaçinho de lata. Chegando em casa falei com meu pai: - Não quero presente, não quero brinquedo esse ano, eu quero uma gaita. Aí ele me deu uma gaita, acredita que ele me deu uma gaita de manhã e a tarde eu já estava tocando duas músicas?

Daniela Aragão: Intuitivamente você já saiu tocando.

Aécio Flávio : Sim, eu ouvia as músicas no rádio, uma das músicas se chamava “Porteira Velha” e a outra “Adios Pampa Mia”. Eu ouvia muito isso na rádio e acabou ficando. Eu pegava a gaita até ficar tonto de tanto soprar, mas saía. Lá em casa acontecia o seguinte, o filho fazia dez anos de idade e tinha que trabalhar. Meu irmão mais velho trabalhava numa lapidação de rubis, ele arrumou para mim um trabalho numa colchoaria, num tal de seu Juca. Lá fui eu ficar enchendo travesseiro de pano. Um dia depois do almoço, eu estava recostando e encostei na parede, quando esbarrei num violão que soou o som das cordas soltas.

Daniela Aragão: A música sempre te perseguindo, ou você instintivamente procurando ela.

Aécio Flávio:  Com certeza. Eu fiquei fascinado por aquilo.  Pensei, o que é isso? Peguei aquele violão e comecei a mexer. Fiquei mexendo, mexendo, no dia seguinte eu já estava colocando um, dois dedos, daí fiz um sol maior. Pedi um vizinho nosso que me ensinasse a tocar, ele tinha um trio que imitava o Trio Los Panchos. Ele me ensinou uma, duas posições, eu cheguei em casa e ensinei para o Rubinho, meu irmão mais novo. Daí depois descobri o cavaquinho, percebi que a afinação eram as quatro cordas mais agudas do violão, daí passei para o cavaquinho. O violão era o cavaquinho com mais dois baixos, o mi e o lá.

Daniela Aragão :Você foi transitando pelos instrumentos...

Aécio Flávio : Meu irmão mais velho gostava de cantar e tocar pandeiro, não demorou para que tivéssemos um conjuntinho dentro de casa. O mais novo, hoje engenheiro, quando tinha seis anos tocava Waldir Azevedo, “Brasileirinho”, “Pedacinho do céu”, as coisas que eu passava para ele tocar no cavaquinho. Fomos com esse conjunto tocar na Rádio Guarani, o programa chamava-se Gurilândia. Saíamos, pegávamos o bonde, isso nos anos cinquenta. E meu pai ficava todo orgulhoso de nos ver tocar, o conjunto era composto por gaita, violão, cavaquinho e pandeiro. E ele tinha aquele orgulho, aquela vaidade de fazer tocarmos na rádio. Meu pai insistia para que tocássemos no bonde, nós tocávamos morrendo de vergonha do bonde. Meu irmão mais velho ficava puto de ter que tocar no bonde.

Daniela Aragão : E como surgiu o piano? Ele é o seu instrumento oficial?

Aécio Flávio : Não elegi um instrumento, meu instrumento é a partitura. Eu me especializei em fazer arranjo, sou arranjador. Por eu gostar de tudo o que é instrumento, acabei descobrindo que ao fazer arranjo você pode tirar sarro de todos eles. Eu faço por exemplo partitura para piano em que eu não toco, faço partitura a qual não sou capaz de tocar. Sou meio autodidata no piano, passei do acordeon para o piano. Voltando a gaita, comecei a perceber que tinham certas notas que ela não tirava, os sustenidos e bemóis. Então chegavam determinadas músicas em que eu tinha que pular a nota. Aí me mostraram uma gaita de chave e comecei a tocar.

                                

Daniela Aragão: É interessante como você falou dessa sensação de que a gaita não dava conta da sonoridade que você queria, ela era de certa maneira limitada em termos de recursos. Você passou da gaita para o acordeon e do acordeon para o piano. Esse é o percurso do João Donato também né? Essa necessidade de amplitude sonora que o piano é capaz de suprir. E você não elegeu um instrumento específico.

Aécio Flávio : Daí fiquei tocando acordeon e meu pai foi me levando para os bailes para tocar. A orquestra tocava e no intervalo em que o músico trocava de partitura ficava aquele branco, daí eu entrava e tocava de ouvido. Eles só tocavam escrito e eu tocava de ouvido, eu tinha um ouvido de tuberculoso, ouvia e saía tocando.

Daniela Aragão : Você teve alguma formação básica de música, passou por conservatório?

Aécio Flávio : Fui tocando tudo de ouvido. Eu ouvia um cara chamado Mário Genaro Filho, um paulista descendente de italiano. Montei então o meu grupo para fazer os bailes. Eu tocava acordeon, até que um dia meu instrumento foi roubado. Depois comprei um vibrafone e comecei a tocar, pintou uma chance e ganhei um troféu em Belo Horizonte chamado “O melhor da noite”. Fiz depois um disco com a maioria das faixas em vibrafone. Depois cheguei ao piano.

Daniela Aragão : Olha só, todo um percurso para chegar ao piano, quantos anos você tinha quando iniciou com o piano?

Aécio Flávio : Eu tinha 21 anos. Eu tirava muita coisa no violão e transpunha para o piano. Até hoje faço muita harmonia que é de violão. Um dia fui fazer o exame no Conservatório Brasileiro de Música e senti que eu tinha chegado num ponto em que não tinha mais saída, eu não estava satisfeito com o que eu fazia. Aí pensei, meu pai tem razão, preciso estudar música. Tomei pau no exame, você tinha que ler oito compassos à primeira vista, escrever um ditado em primeira audição, acompanhando o que a pessoa tocava no piano.

Eu levei ferro, não passei. Daí o Helvius Vilela, que faleceu faz poucos dias, me comunicou que estava tendo concurso na Universidade mineira de arte. Fiz o exame, me preparei e passei com dez. O pianista da boate em que eu tocava nos intervalos, parava e me dava uma aulinha de teoria. O Helvius ficou lá três meses e eu fiquei cinco anos. Helvius tocava muito bem de ouvido, achou que não era preciso e parou. Lá aprendi teoria, solfejo e harmonia. Harmonia básica e superior. Então com seis meses de teoria lá, já tínhamos um grupo com sax alto, trompete, baixo, bateria e guitarra. Eu já tirava músicas de discos para tocar no grupo.

Daniela Aragão : Já nascendo o arranjador

Aécio Flávio : Começou assim. Eu escrevia o trompete, o saxofone e começava a dar certo. Eu aplicava esse aprendizado nos bailes, já que eu tinha um conjunto na mão. Um dia, no ponto dos músicos, eu encontrei um nego chamado Figo Seco. Ele foi o cara que montou uma banda chamada “Alma Brasileira” e que fez o maior sucesso. Ficou onze anos com essa banda na Alemanha. Certa vez ele me perguntou: - “Você não usa grade para fazer arranjo?” . Eu perguntei o que era grade, ele me mostrou que era para escrever um compasso para cada instrumento, o que facilitaria muito na hora de copiar. Daí passei a usar a grade e procurei ler coisas a respeito, peguei com um amigo que estudava na Berkeley algumas lições. Aprendi muita coisa.

Daniela Aragão : Esse início se deu em Belo Horizonte, mas você tem uma longa carreira construída no Rio de Janeiro. Como foi a mudança para o Rio?

Aécio Flávio : Em Belo Horizonte eu consegui ter meu grupo, fazer um disco pela Philips. Era um disco em que trabalhei como arranjador. Daí os caras começaram a vir para o Rio, apareceu o rock, então os caras com três, quatro elementos faziam uma festa, enquanto na minha banda tinham doze.

Daniela Aragão : Você é de Belo Horizonte e contemporâneo do pessoal do Clube da Esquina.

Aécio Flávio : A turma do Clube na verdade ensaiava em minha casa. Como ninguém tinha piano eles iam ensaiar lá em casa, o Helvius, o Wagner Tiso, o Nivaldo Ornelas, Paulinho Braga. Mas eu nunca fui de panela, sempre fui traçando meu caminho. Um dia o Chiquito Braga, que era o guitarrista que tocava comigo, foi para o Rio e eu ainda em Belo Horizonte.

Eu conheci o Toninho Horta desde quando ele tinha quatorze anos, ele ficava na sala corujando o ensaios meus com Chiquito. Um cara chamado André Carvalho, que inaugurou uma gravadora chamada Bemol, me chamou para fazer uma coleção de discos infantis. Falou: - “Estou com uma história de bicho e gente, você quer trabalhar comigo?”. E ele me cobrava direto isso, até que fiz quinze músicas numa tacada só, num fim de semana. Pra essa gravação chamei o Toninho, foi a primeira vez que ele entrou em estúdio e gravou. Isso foi na década de sessenta. Vim para o Rio em setenta e um. E no Rio trabalhei na  Globo e com várias pessoas.