Entrevista com o compositor e cantor Cac?udio

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Entrevista com o compositor e cantor Cac?udio

Entrevista com o compositor e cantor Cacáudio

 Daniela Aragão 6/09/2018

Daniela Aragão: Como começou a descoberta do som em sua vida?

Cacáudio: A casa de meus pais sempre foi muito musical. Eles não eram músicos, embora minha mãe tenha estudado violino, quando mocinha. Ela conta que vendeu o violino, para comprar o enxoval para casar. O piano surgiu lá em casa, como em muitas outras, para o irmão mais velho. Comecei ouvindo meu irmão mais velho tocar. Reza a lenda, que um dia ele estudava para uma prova de piano e não conseguia avançar, de um determinado trecho. Fui lá e fiz a melodia, com a mão direita, mas já mostrando alguma musicalidade. Meu irmão tem piano em casa e toca flauta doce muito bem. Contudo, quem acabou levando a música a fundo fui eu.

Daniela Aragão: O piano foi o seu primeiro instrumento?

Cacáudio: Sim, fiz conservatório em Santos Dumont, no Conservatório Johann Sebastian Bach. Fiz parte de uma das primeiras turmas do conservatório. Depois, estudei um pouco de violão popular, com um professor muito bom, chamado Mario Lucas. Ele é uma das pessoas que agradeço no CD. Toninho Faria era o diretor do conservatório, um músico e arranjador de formação popular, que criou uma orquestra de músicas dançantes, com mais de vinte componentes. Eu tocava um dos teclados. Toninho me deu muita força. Outra pessoa desta época, a qual agradeço é a Dona Julieta, que foi uma das minhas professoras de piano.

Daniela Aragão: Dona Julieta foi um marco para você não é?

Cacáudio: Tive a sorte de ser aluno de dona Julieta. Geralmente em conservatório, exigem que se fique restrito às partituras e fechado no lance mais clássico. Sempre tive musicalidade e ouvido, para tirar música popular. Eu gostava muito de música popular e dona Julieta me estimulava. Às vezes, eu chegava com alguma música que tinha tirado e ela dava força.

Daniela Aragão: Você fez a formação completa? Estudou harmonia?

Cacáudio: Durante o período do conservatório, estudei teoria. Recentemente, fiz um curso de harmonia funcional, com o Maestro Sylvio Gomes. Antes, tive algumas aulas de harmonia, com o professor Estevão Teixeira. Fiz algumas aulas de técnica de piano, com o professor André Pires. Mas muito do que sei de harmonia, foi estudando sozinho em métodos e livros. Desde a adolescência sou curioso,  troquei muitas ideias com músicos da noite com os quais toquei.

Daniela Aragão: O que você gostava de ouvir?

Cacáudio: Sempre gostei de muita coisa. As pessoas diziam que eu tinha que me direcionar, mas como direcionar diante de tantas belezas? Nasci em 1960, no auge da Bossa Nova. Cresci ouvindo Bossa Nova, mas ouvia também Jovem Guarda, Beatles, Baden Powell (recordo-me de um LP do Baden, em que eu tentava tirar as músicas de ouvido). Assistia aos festivais de música popular que estavam no auge.

Daniela Aragão: E o Sebastian Bach?

Cacáudio: (risos) Não era a minha praia o clássico. Lá em casa ouvíamos muita música clássica, mas também outros gêneros. Sempre aparecia em minha casa, alguém que sabia cantar e algum músico. Na década de 70, quando eu tinha 12 anos, ouvi o Milton Nascimento, Clube da Esquina. Quase não entendia nada das letras, mas adorava o som. Depois comecei a ir aos bailinhos e ouvir baladas. Eu adorava.

Daniela Aragão: Você pegou na juventude o auge da discoteca.

Cacáudio: Sim. Mesmo antes do boom da Discoteca, tinham algumas baladas internacionais lindas. Eu me emocionava com Stevie Wonder, Elton John. Meu irmão morou um ano nos EUA, quando eu tinha 12 anos. Ele voltou para o Brasil com duas malas, uma de roupa e outra de LPS, cheia de rock progressivo, que eu curtia muito. Mas eu adorava Edu Lobo, Chico Buarque...

Daniela Aragão: Quando começou a florescer seu lado compositor?

Cacáudio: Cedo. Com uns treze anos, fiz uma primeira composição, com um vizinho. A música foi classificada para o festival em Santos Dumont. Era uma composição muito infantil, mas já um início. Lembro-me de que quando ganhei meu primeiro violão, compus um baião instrumental.

Daniela Aragão:  Em Santos Dumont você se tornou conhecido também por compor sambas-enredos.

Cacáudio: Com dezesseis anos fiz o primeiro samba enredo. Tive sambas desfilados nos carnavais de 1977, 78, 80 e 82. Três desses foram parceria com o Edinho da Cuíca. Ele não tocava, mas cantava bem, criava melodias e boas letras. Em 1978 o samba enredo foi gravado num compacto. De um lado o nosso samba e de outro o samba de outra escola. Carnaval lá era super movimentado, algumas escolas desfilavam com mais de mil componentes.

Daniela Aragão: Quando você veio para Juiz de Fora?

Cacáudio: Cheguei em 1975, com quase 15 anos, para fazer o ensino médio, no curso técnico. Morava aqui em repúblicas. Um fato muito bacana desta época, o qual se fixou em minha memória. Era muito comum no sábado à tarde, quando passava os finais de semana em Santos Dumont, sentarmos à tardinha na varanda de casa. Eu pegava o violão e minha mãe cantava. Aprendi muita coisa com ela (toca ao violão “Marambaia” e canta). Eu gostava imensamente, quando minha mãe cantava músicas antigas como: “teus olhos são duas contas pequeninas/qual duas pedras preciosas que brilham mais que o luar”, ou “caminhemos talvez nos vejamos depois”.

Durante meu primeiro ano em Juiz de Fora, comprei um método de harmonia dissonante, do Paulinho Nogueira. Destrinchei o método dele, que trazia uma porção de cadências. Devorei. Tinha no final umas sequências. Desta forma, fui aprendendo a usar harmonias dissonantes. No início, tive pouco contato com os músicos de Juiz de Fora, embora trocasse ideias com alguns músicos, que também cursavam o CTU. Na ditadura era difícil sair. Lembro-me de uma ocasião, em que tivemos de conseguir liberação da censura, para fazermos um evento no CTU. Ainda nessa época, participei pela primeira vez do “Som Aberto”, evento que acontecia aos sábados de manhã na UFJF. Este evento consistia num foco de resistência política, onde também se apresentaram muitos artistas brasileiro contas

Daniela Aragão: Como se deu sua amizade com o músico Paulinho Pedra Azul?

Cacáudio: Paulinho foi fazer um show em Santos Dumont e o produtor, que era meu amigo, me convidou para fazer algumas canções minhas na abertura. Paulinho achou que seria mais interessante abrir um espaço no meio do show dele.

Daniela Aragão: Ele abriu uma possibilidade para interagir.

Cacáudio: Certamente. Ele foi a minha casa, para que eu lhe mostrasse minhas músicas. Toquei, passei o violão para ele e peguei a flauta. Depois fiz uma introdução de uma música dele no teclado. A princípio eu levaria só o violão, mas o Paulinho pediu para que eu levasse o teclado e a flauta também. Ele fez a primeira parte do show, me chamou para o palco, subi toquei as minhas musicas. Depois continuei no palco tocando as músicas do Paulinho.

Daniela Aragão: Aconteceu uma identidade entre a sua musicalidade e a dele.

Cacáudio: Exatamente. Recordo-me de que terminou o show, saímos do palco. A plateia pediu bis e o Paulinho me perguntou, se eu tocava uma música do Beto Guedes. Combinamos a tonalidade na hora, e de imediato voltamos ao palco. No dia seguinte, ele iria fazer um show em Carandaí e me convidou para tocar com ele. Um ano depois, toquei com ele em Juiz de Fora, Leopoldina. Nossa parceria “Amar é o que mais nos resta”, foi incluída no meu cd. Há outras coisas a caminho.

Daniela Aragão: Algo que me chama muita atenção em seu disco é o seu talento como cantor. Você já cantava?

Cacáudio: Apesar de cantar e compor com muita frequência, me apresento mais como músico acompanhante. Sempre gostei de cantar. Interessante, isso que você destaca sobre o meu cantar. Perguntei ao Caetano Brasil, que foi o arranjador de meu disco, o que chamou a atenção dele no processo de gravação do CD. Ele falou que se surpreendeu com minha voz e interpretações. O maestro Sylvio Gomes, também disse que o que mais o chamou a atenção foi a forma como coloco a voz.

Daniela Aragão: Seu timbre é bonito, a afinação precisa. Seu disco é um trabalho muito bem concebido e arrojado, maduro.

Cacáudio: Eu componho há muito tempo. Sempre senti que precisava de letristas, para colocar letra nas minhas canções. Componho essencialmente canção. Raramente, componho dando ênfase no instrumental, penso sempre na letra que irá se encaixar. Às vezes escrevo letras para as músicas, mas raramente fico satisfeito com minhas próprias letras. Há alguns parceiros da geração nova, que muito me inspiram e estimulam a compor as canções.

Daniela Aragão:  Quais são estes parceiros?

Cacáudio: Kadu Mauad, por exemplo, é um grande letrista, faz letras fantásticas. Dudu Costa escreve com uma poética bonita, que me emociona. As letras do Márcio Correia (que é meu primo): Yara, que é linda; a letra da Mantiqueira, que deu título ao meu disco. A letrista e produtora Juliana Stanzani. Estas parcerias foram surgindo e então senti, que o trabalho tinha consistência, para resultar num cd da maneira que eu gostaria. E fui criando estratégias na vida, para poder deixar florescer ainda mais a música.

Daniela Aragão: Você se mostra muito consciente da seriedade que implica a elaboração de uma obra.

Cacáudio: Produzir um cd, demanda um tempo e investimento. Você tem que se ligar nisso. O que tentei fazer, foi de coração e com plena entrega. As pessoas me cobravam pelo meu disco e eu sabia, que no momento em que eu decidisse fazer, iria ser com paixão e envolvimento. Devo ressaltar, todo o contexto da criação e execução do “Mantiqueira”, assim como a imprescindível participação dos parceiros. A linda letra da Juliana Stanzani. A letra densa do Tiago Sarmento, que fala de um amor conturbado; mereceu uma canção com influência do “blues-rock”. Costumo, em geral, fazer a melodia e mandar para os parceiros; com ele ocorreu o contrário, recebi a letra para musicar. Gravamos a base só com piano e guitarras. Na realidade, realizar o projeto do “Mantiqueira”, foi um trabalho, como digo, de muitas mãos e muitos corações.

Daniela Aragão: É nítido, como você possui uma assinatura própria e ao mesmo tempo, como é capaz de transitar com maestria por uma variedade de gêneros. Você bebe no legado da canção brasileira, desde a pré Bossa Nova, passa pela grande MPB que é Chico Buarque, Edu Lobo. São muitas vozes que caminham com você.

Cacáudio: Eu quis neste disco, mostrar a diversidade de influências e de gostos. Minha parceria com o Paulinho Pedra Azul é uma modinha, cuja base melódica é do início do século passado. É uma melodia de cem anos, mas claro que damos uma roupagem mais nova. Os arranjos do Caetano Brasil, com cordas e clarinete, ficaram muito bonitos. O choro, em parceria com o Thiago Miranda é outra canção, em que recebi primeiro a letra. Uma letra bem humorada. Há no disco influências de Edu, Chico, Dori e dos mineiros, claro. A raiz está em Minas.

Daniela Aragão: Destaco, no entanto, que o disco traz uma unidade, os gêneros não ficam dispersos numa salada aleatória.  Os arranjos são belíssimos.

Cacáudio: Os arranjos são concebidos pelo Caetano Brasil, um jovem muito talentoso, comprometido com o trabalho. Ele fazia tudo a tempo, sempre com ideias muito bacanas. Tivemos muita sintonia de ideias musicais. Havia uma confluência na nossa maneira de pensar as músicas, o que facilitou muito o trabalho.

Daniela Aragão: Como se deu a participação do Cristovão Bastos na impecável faixa “Yara”?

Cacáudio: Eu compus essa melodia no violão, embora seja muito pianística. Gravei em casa, cantarolando a melodia “laraiaralaraiara...” e mandei para o Marcio, meu primo, para fazer a letra. Ele enxergou ali a Yara. Finalizamos juntos a canção. Cristovão é um de meus maiores ídolos, lembro-me de ouvir seu piano minimalista, elegantemente sutil, em gravações de Chico Buarque, Paulinho da Viola, Nana Caymmi. Conversei com o Estevão Teixeira, sobre a possibilidade de o Cristovão vir a Juiz de Fora, para gravar o piano. Ele gravou de primeira, viu a partitura num dia e pronto.

Daniela Aragão: Cristovão Bastos é um artista grandioso e sempre disposto a dialogar com novos trabalhos.

Cacáudio: Com certeza, chama-me atenção a entrega dele absoluta ao trabalho. A princípio, perguntou apenas pela modulação.  Decidimos  deixar por conta dele. É genial o fato de  que, mesmo não conhecendo a letra da música, quando eu cantava que a Yara dançava e fazia desenhos na areia, ele elaborava um desenho sonoro, justamente neste trecho. Mais adiante, a letra diz que a Yara alimentava um fogo em mim, Cristóvão produzia o fogo. Cristovão possui muito recurso, muita genialidade e sobretudo, delicadeza e generosidade. É importante ressaltar essa  generosidade desse grandioso artista, explícita em sua capacidade de doar seu talento, para enriquecer o nosso “Mantiqueira”.

Daniela Aragão: O que vemos hoje no Brasil são trabalhos de altíssima qualidade feitos de forma independente. O desafio é como alcançar o público. O seu trabalho transcende o universo local, não se restringe a Juiz de Fora.

Cacáudio: Fiquei muito satisfeito com o resultado. Se não fosse o apoio da Lei Murilo Mendes (da Funalfa/PJF), eu não conseguiria fazer o disco. Mesmo assim, tive que  completar com recursos próprios. Tenho certeza de que o resultado final do trabalho ficou muito bacana. Não só pela qualidade das composições, mas das interpretações e dos arranjos. A qualidade sonora do disco, a captação do som, mixagem, tudo ficou muito bom. A grande dificuldade está na distribuição. Como colocar o produto para o Brasil conhecer? Não sei. Vou usar uma empresa alternativa, para distribuir o “Mantiqueira”, disponibilizar nas plataformas disponíveis, mas a divulgação em mídias de grande alcance é algo difícil.

Daniela Aragão: Não há mais espaço para o trabalho de qualidade

Cacáudio: O que está tocando nas chamadas grandes mídias, não dá para se ouvir. Juiz de Fora possui uma produção musical muito boa. “Borandá, meu camará”, do Roger Rezende, é muito bonito, Caetano Brasil lançou um disco primoroso de música instrumental. O Wesley Carvalho tem composições muito boas. Dudu Costa, Carlos Fernando, Laura Jannuzzi, para citar alguns nomes. Como fazer a produção desses artistas chegar ao público? Como conseguir espaços apropriados e recursos para pagar os músicos para os shows? Como sobreviver da produção artística?

Daniela Aragão: É comum acontecer de o artista fazer um disco de qualidade e não conseguir recursos para um show de lançamento com a composição da banda.

Cacáudio: Temos que contar muitas vezes com a colaboração dos amigos, em especial dos amigos músicos, pois pagar um cachê, que de fato merecem, nem sempre é possível. O “Mantiqueira” teve a participação de muitos músicos convidados.  Realizar um show, que reproduza a concepção musical do disco, requer um investimento razoável de trabalho e financeiro.

Daniela Aragão: Você exerce o ofício de professor de estatística na UFJF. Dizem que a música é matemática. Como você vê a proximidade entre a matemática e a música?

Cacáudio: Música para mim é coração, emoção, sentimento. Estatística é meu lado da razão, embora eu realize as atividades docentes com muita paixão também. O que acho que tem a ver, entre essas duas ciências é a capacidade de abstração.

Quem estuda matemática, tem que se abstrair de seu mundo concreto e com a música também funciona dessa forma. É a capacidade de abstração, que une mais que a questão do cálculo, frequências, divisões e contagens.

Daniela Aragão: O que é a música para a sua vida?

Cacáudio: A música é vida, é meu alimento. Se não fosse a música, eu acho que ficaria louco. Na vida, a gente sempre passa por momentos difíceis nas relações pessoais, no trabalho, no mundo acadêmico.  A música me manteve vivo. Nunca abandonei a música, embora em vários momentos, não pudesse estudar tanto quanto eu gostaria. É preciso dedicação, muito estudo.