Por que a trilha sonora é t?o importante em uma novela?
Por que a trilha sonora é tão importante em uma novela?
Se, no passado, além dos festivais, programas como os do apresentador Abelardo Barbosa, o Chacrinha, revelavam e promoviam novos talentos musicais, hoje a música está presente na televisão primordialmente através das trilhas sonoras das telenovelas. Apresentadores como Fausto Silva e Raul Gil atuam como "substitutos" possíveis de Chacrinha no que se refere às atrações musicais, porém, as trilhas sonoras são mais representativas quanto à divulgação musical, até pela constância de sua veiculação, já que as obras de ficção televisiva no Brasil são diárias e os programas de auditório, em sua maioria, são semanais.
Um momento marcante da transferência da música popular dos palcos dos programas de auditório para as trilhas sonoras das telenovelas ocorreu em 1968, quando o cantor Roberto Carlos deixou de apresentar o programa "Jovem Guarda", na TV Record. Quando voltou ao Brasil, após uma viagem à Europa, o rei foi recepcionado com louvação, devido à vitória no Festival de San Remo, enquanto Erasmo Carlos lançava, na "Jovem Guarda", a música "Sentado à beira do caminho", que foi um grande sucesso como tema da novela "Beto Rockeffeller". A canção, composta por Roberto e Erasmo Carlos, ao mesmo tempo em que parecia representar a tristeza que os colegas sentiram quando o rei abandonou o programa que fazia tanto sucesso até então, também funcionava como recurso dramático na novela de Bráulio Pedroso, num momento em que os programas musicais com auditório passaram a ter menos destaque na grade televisiva.
Nos primeiros anos da parceria entre música popular e ficção seriada, a primeira funcionava como um pano de fundo para contar histórias. Mas, com o passar do tempo, ela foi ganhando espaço e adentrou ao contexto das narrativas, funcionando como recurso dramático e até fazendo parte das cenas. Foi desta forma que as trilhas sonoras ganharam grande espaço na TV e ajudaram a Rede Globo a se firmar como maior emissora do país e a alcançar seu "Padrão Globo de qualidade". Nesse período, a Rede Globo promoveu modificações em sua programação, devido a seu objetivo de liderança e também em virtude do contexto histórico da ditadura. As mudanças atingiram os programas de auditório, diminuindo a informalidade e a improvisação e dando prioridade aos programas pré-gravados, passíveis de maior controle interno. Assim, a telenovela passou a ser um elemento chave dentro das estratégias da emissora: o gênero buscava atingir o gosto da crítica cultural, e a música representava um reflexo das transformações em curso e se mostrava como elemento redefinidor do conteúdo da programação.
Podemos citar vários exemplos de canções marcantes que embalaram personagens de nossas novelas preferidas: "Meu Mundo e Nada Mais" fez a carreira de Guilherme Arantes deslanchar quando foi inserida na trilha sonora de "Anjo Mau", em 1976. Quem viveu na década de 1970 certamente também se lembra de "Rock and Roll Lullaby" na voz de B. J. Thomas, que foi tão entoada durante os capítulos de "Selva de Pedra". Na mesma década, "Pecado Capital" tinha em sua abertura a canção homônima, composta sob medida por Paulinho da Viola. Já "Dacin'Days", de Gilberto Braga, além das meias coloridas e outros acessórios, lançou a moda musical da disco-music.
O diretor musical Mariozinho Rocha é um especialista em detectar canções que podem ser associadas a diferentes tramas e personagens. Ele recebe centenas de gravações e sugestões de músicas para telenovelas. Quando encontra uma música que considera muito boa, mas não vê, no momento, um personagem ou núcleo com o qual ela combine, ele guarda a gravação e espera o momento certo de desembalá-la. Foi o que ocorreu com o grande sucesso "Dona", que marcou as aventuras da viúva Porcina (Regina Duarte) em "Roque Santeiro". Tratava-se de uma composição de Sá e Guarabyra que foi desclassificada no Festival MPB Shell, em 1983. Quando a novela foi finalmente lançada em 1985 – ela iria ao ar dez anos antes, mas foi adiada por conta da censura na época da ditadura militar –, Mariozinho não teve dúvida em relação às aproximações entre a canção e a personagem e solicitou uma gravação do conjunto Roupa Nova, até hoje um dos campeões em termos quantitativos de gravações de trilhas sonoras para telenovelas. "Roque Santeiro" foi a primeira novela da Rede Globo que abriu mão de uma trilha sonora internacional e lançou um segundo LP com mais músicas nacionais, devido ao sucesso do primeiro.
No que se refere à força das trilhas sonoras de ficção seriada, um bom exemplo é o capítulo da novela "Laços de Família", exibida pela Rede Globo em 2001, em que a personagem Camila – interpretada por Carolina Dieckmann – teve os cabelos cortados em decorrência do tratamento contra a leucemia. A cena ficou para a história da teledramaturgia: à medida que a personagem chorava, o telespectador era envolvido emocionalmente com seu drama e ouvia a música "Love By Grace", da cantora Lara Fabian, que não era conhecida do Brasil até então. A cena durou mais de três minutos, a música foi a segunda mais executada nas rádios brasileiras e o CD com a trilha sonora internacional da novela foi o mais vendido no país naquele ano.
Hoje, a canção que entra em uma trilha sonora, quando já é conhecida, funciona como um chamariz na ocasião do lançamento da telenovela. Se alguém ouve "Você não vale nada mas eu gosto de você", da banda de forró Calcinha Preta, certamente associará à personagem Norminha, vivida por Dira Paes em "Caminho das Índias", exibida em 2009. Na mesma linha, podemos citar o forró "Correndo atrás de mim", que remete à personagem Suelen (Ísis Valverde) de "Avenida Brasil", que foi ao ar em 2012. Enfim, percebemos, atualmente, que os nomes que fazem sucesso na música popular são também aqueles escolhidos para cantarem as trilhas sonoras das telenovelas, ou seja, as trilhas sonoras estão ligadas ao sucesso fonográfico do momento. Assim, após do estrondoso sucesso de "Ai se eu te pego" em 2011, Michel Teló participou da trilha sonora de "Avenida Brasil" no ano seguinte, levando sua "Humilde Residência" ao horário nobre da programação da Rede Globo.
São muitos os sucessos que poderiam ser citados, canções que, ao serem executadas, nos remetem imediatamente a personagens da teledramaturgia. Se eu fosse fazer uma lista de todas elas, certamente o leitor não teria paciência para ir até o fim deste artigo, que já se prolonga. O que podemos dizer é que, definitivamente, hoje não seria mais viável produzir telenovelas sem o auxílio da música para contar as histórias, pois esta é uma das responsáveis, senão a principal, pela lembrança de tantas novelas e personagens durante mais de 40 anos da teledramaturgia da Rede Globo. Sendo assim, fica claro que o papel da música na TV foi reconfigurado ao longo das décadas. Se antes havia atrações exclusivamente musicais, hoje as possibilidades de divulgação de intérpretes e canções através das telenovelas são enormes, num processo que pode beneficiar ambas as partes: as tramas, que ou ganham um rico recurso dramático e de identificação, e a música popular, que ganha um espaço diário de divulgação. Tudo isso variando, é claro, com as possibilidades artísticas e mercadológicas existentes em cada contexto.
Paula Faria é jornalista e mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora, além de especialista em TV, Cinema e Mídias Digitais, pela mesma instituição. Também é publicitária pela Faculdade Estácio de Sá e desenvolve pesquisas relacionadas à comunicação, cultura e identidades, mais especificamente sobre ficção seriada televisiva e música popular brasileira.