A gata de Mário de Andrade

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A gata de M?rio de Andrade
Daniela Aragão 11/02/2016

A gata de Mário de Andrade

O carnaval acaba hoje e pouco ânimo tive para cruzar a fronteira que ultrapassa a lixeira externa do condomínio de meu prédio e a rua. Contemplativa, me perco todos os momentos que posso observando cada nuance de meus felinos Capitu, Ravel e Garfil. Há ainda uma pequena família composta por três lindíssimos gatos acinzentados e aveludados, que miam com os olhos famintos diante de minha janela da sala quase diariamente. Não resisto e coloco em pequenas porções grãos de ração entre o parapeito da janela de forma que não os assuste, pois já são gatos escaldados e plenamente livres. Meus leitores devem pensar que tornei-me monocórdica, pois esta é a terceira crônica a qual retomo o tema. Bom é saber que esse apreço compactuo com muitos escritores e músicos. Cora Ronai possui felinos de várias cores e frequentemente presenteia seus amigos das redes sociais com fotos deslumbrantes, Danilo Caymmi possui um casal encantador, Sueli Costa e minha amiga Lu se perdem de paixão pelas suas “Flores” (bom nome para gata, não?) e mais tantos e tantos amigos queridos, após o convívio com esses peludos tornam-se fãs ardorosos.

Como meus felinos são Teresinenses, não posso deixar de citar um belo livro adquirido em Teresina, dedicado a história de uma gata especialíssima. Seria ela sapeca? Levada da breca? Preguiçosa e sagaz como o amarelado e irresistível Garfield? Malandra e sedutora como o Gato de botas? Estaria perdida entre o sorriso de Alice? Acompanhando o Manda- chuva entre golpes impecáveis? Não, essa gata é simplesmente movida pela sensibilidade que fez encantar a alma do poeta Mário de Andrade.

A metade extraviada”, escrita pelo professor e escritor Cineas Santos, com ilustrações deslumbrantes de Genivaldo Costa, é um livro para todas as idades e presumo que os adultos aficcionados por felinos irão se deleitar com a estória da gatinha Mimosa, repleta de meiguice e delicadeza: “Já se disse que era uma gatinha comum, uma como tantas outras a roçar-se nas pernas, a disputar com os cães subservientes migalhas de carinho dos donos. Sim, seria uma gata comum não fossem algumas singularidades. Como já se viu, não costumava perseguir passarinhos nem insetos; ignorava os ratos e quase não miava. Não bastasse isso, gostava muito de música suave e adorava a chuva, melhor seria: adorava ver a chuva cair mansamente por trás das vidraças”.

Mimosa num dia inesperado é abandonada pelo lar que a criara e tem que sobreviver na vida-viralata sem nenhum preparo emocional. Teria que ser verdadeiramente um bicho para catar lixo entre os detritos e abafar o medo do desconhecido e a fome, que era mais falta de carinho que alimento. As artimanhas do destino foram em certos momentos complacentes com a sensível Mimosa, um golpe de sorte a brindou no instante preciso em que o deslize de algumas crianças que brigavam fez um sanduíche rodopiar e aterrisar mansamente em suas patinhas: “Mimosa aplaudiu o espírito guerreiro dos garotos, torceu para que o conflito se generalizasse pela vizinhança e se estendesse por séculos a fio. Para ela, naquele dia, a guerra estava ganha”.

Aqueço-me na suavidade do sono de minha Capitu e no voyeurismo de Garfil e Ravel, que alternam-se na vista do parapeito da janela, como dois autênticos machos apreciadores das belezas fêmeas que ora passam. E as narrativas vão se equilibrando numa quase homeostase, até que Mimosa encontra o aconchego de um lar: “O homem andava pela casa como um sonâmbulo, sem tocar em nada. Às vezes, parava, esfregava as mãos e repetia para ninguém: “O amor acabou, mas é outubro/e respiro o perfume desse alívio” (Graça Vilhena). Do esconderijo, Mimosa podia vê-lo de corpo inteiro. Impossível dizer se era novo, velho, bonito ou feio. Era apenas um homem ainda não concluído”. Mário de Andrade liga o toca-discos e a gata Mimosa entende que ali entre Debussy, Villa Lobos e palavras livres. Havia encontrado a felicidade, talvez.