A projeção das novelas em nossa vida cotidiana

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A proje??o das novelas em nossa vida cotidiana
 Paula Faria 3/12/2014

A projeção das novelas em nossa vida cotidiana

Semana passada, me peguei pensando sobre o papel das telenovelas em nosso cotidiano ao assistir a mais uma das cenas já típicas da teledramaturgia brasileira: em Império, as personagens Juliane (Cris Vianna) e Carmen (Ana Carolina Dias) se encontraram no banheiro de um restaurante, depois das muitas armações desta última que prejudicaram a vida da primeira. E é claro que a mocinha se vingou dando uma bela surra na megera, para a alegria de muitos telespectadores. Quem não assistiu à briga, certamente se sentiu familiarizado com a descrição, pois as mocinhas de várias outras novelas também tiveram suas vinganças em situações semelhantes, que sempre deram origem a vários comentários nos dias seguintes, sejam eles de crítica a uma suposta falta de criatividade dos novelistas, sejam de elogios por parte das pessoas que se sentem vingadas quando a vilã é derrubada pela mocinha.

A redundância é uma das características primordiais da telenovela enquanto gênero televisivo: cada capítulo se inicia com a cena final do anterior, trazendo uma repetição incessante de cenas, quase sempre através de sonhos ou lembranças dos personagens. Além disso, as temáticas, os atores e os autores também se repetem. Em tramas que se passam na contemporaneidade e que buscam, por exemplo, abordar o preconceito racial, atores como Taís Araújo e Lázaro Ramos estão, com frequência, presentes. Outro exemplo é o de Antônio Fagundes, que acumula vários papéis autoritários, como o fazendeiro Bruno Mezenga de "O Rei do Gado" (em 1996-97, de Benedito Ruy Barbosa), o líder comunitário Juvenal Antena de "Duas Caras" (em 2007-8, de Aguinaldo Silva), o coronel Ramiro Bastos do remake que "Gabriela" (em 2012, com adaptação de Walcyr Carrasco) e o médico César Khoury da recente "Amor à Vida" (2013-14, de Walcyr Carrasco).

Tudo isso tem uma razão de ser. A escolha dos mesmos atores para representar determinado tipo de papel, por exemplo, é um dos recursos utilizados para a promoção de ídolos. Já os embates físicos entre mocinhas e vilãs objetivam a projeção dos telespectadores e a consequente garantia da audiência. Explico: a projeção ocorre quando vemos, na telinha, alguma situação que gostaríamos de viver na vida real e, por algum motivo, não podemos. Mas nossos personagens favoritos podem realizar os feitos que nós não podemos. Eles sentem emoções parecidas com as sentidas por nós telespectadores, mas, na vida real, sabemos que o desfecho das situações é muito diferente. Então, o êxito de determinado personagem nos agrada porque nele nos projetamos e, por isso, continuamos a assistir à telenovela, garantindo, assim, o sucesso de audiência.

Então, a telenovela é nada menos do que uma simulação dos dramas e conflitos humanos. A força deste gênero no Brasil mostra que a atuação da mídia está ligada ao equilíbrio social e contribui para ele na medida em que se aproxima, se afasta, molda, cria ou permite a identificação e a projeção do público nos personagens. A busca pela fidelização desse público é que força as tramas a utilizarem fórmulas repetitivas, com enredos sempre girando em torno de conflitos amorosos e familiares e a insistente polarização entre riqueza e pobreza. Mas a experiência do mercado permite que as novelas captem os aspectos ritualizados da vida cotidiana e os conectem com as novas sensibilidades populares para dar uma nova vida às narrativas midiáticas já gastas.

A telenovela é concebida com o intuito de se assemelhar e até ser aceita e entendida como realidade, colocando em discussão, para tanto, valores e costumes com os quais precisamos lidar em nosso cotidiano. Os valores compõem a essência da ficção seriada e penetram em nossa cotidianidade de uma maneira mais enfática, diferentemente das obras cinematográficas, por exemplo, que não se inserem na vida cotidiana por não possuírem o caráter de serialização. Uma telenovela não pode ser isenta. Ela transmite posicionamentos, questiona valores e faz com que repensemos determinados assuntos ou passemos a pensar sobre algo que não pensávamos antes.

Ao tomar partido de um personagem ao invés de outro, a pessoa que assiste à telenovela está também se posicionando em relação à interpretação de seus próprios dramas. As novelas podem ser entendidas como um imenso repertório de histórias, personagens e comportamentos de domínio comum aos brasileiros. Neste contexto, associações previsíveis acabam dando lugar a combinações de elementos que mostram a busca da composição livre de perfis sociais. Quando nós usamos, por exemplo, roupas inspiradas no figurino de uma personagem televisiva, não estamos demonstrando a intenção de incorporar o "pacote inteiro", ou seja, não queremos assumir todas as características da personagem. Já começa aí a complexidade da relação entre telespectador e obra ficcional televisiva, e isto não pode ser ignorado nem pelos críticos que consideram a teledramaturgia simplória e alienante.

Tendo como principal função o entretenimento, a TV penetra em nosso campo existencial, mostrando personalidades e situações que podem se tornar modelos. É com base neste princípio que se pode falar em telenovela como um instrumento de educação informal ou, simplesmente, promotora de ideologias e valores, os quais são recebidos e interpretados pelo público de diversas formas, podendo ser total ou parcialmente acatados ou, ainda, rejeitados inteiramente. Enfim, a mídia não é uma vilã manipuladora e o telespectador não é um ser passivo. Pelo contrário, há um processo de negociação entre o público e a TV, uma retroalimentação entre ficção e realidade. Portanto, pense duas vezes antes de criticar a fórmula folhetinesca da telenovela. Ela pode estar influenciando indiretamente suas atitudes e seus pensamentos sem que você se dê conta disso.


Paula Faria é jornalista e mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora, além de especialista em TV, Cinema e Mídias Digitais, pela mesma instituição. Também é publicitária pela Faculdade Estácio de Sá e desenvolve pesquisas relacionadas à comunicação, cultura e identidades, mais especificamente sobre ficção seriada televisiva e música popular brasileira