A chegada de Ravel

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A chegada de Ravel

A chegada de Ravel

 Daniela Aragão 26/08/2017

Andam me perguntando pelo meu companheiro peludo Ravel. Não canso de promulgar aos sete mil ventos, que meu modesto sonho de existência é poder morar cercada por muitos peludos. No mínimo uns cinco felinos, que conjuguem as cores preto, amarelo, cinza, branco e alaranjado. Deixo estampada em meu mural a foto feita por mim do trio Garfil, Ravel e Capitu, debruçados sobre o parapeito da janela, em meu pequeno apartamento em Teresina. Garfil, com sua tez lindamente amarelada e seu corpo bem robusto, gostava de se espalhar pela pequena madeira branca, impedindo muitas vezes que seu irmão de coração, o Ravel, e sua mãe também de coração, Capitu, compartilhassem o assento duro. Só pode seguir viagem para Minas o Ravel, que foi eleito por possuir um focinho de coração.

Por onde anda o Ravel? Pois bem, na chegada a Juiz de Fora, nas vésperas do natal, hospedou-se por uns dias no apartamento de minha mãe e causou verdadeira balbúrdia. A idosa e histérica Súria, basset caramelo de minha mãe, quase entrou em colapso ao se sentir ameaçada pelo piauiense gato miador, serelepe e ousado. Num apartamento de dois quartos, restringiu o acesso do peludo somente a uma extremidade da sala. Este, irritado por si só com a velha cadela, escondeu-se por todo o tempo atrás da janela (por sorte com rede de proteção). Saía apenas para beber um gole d’água e invadir a comida da Súria.   

Logicamente, as noites ainda permaneciam o momento de inspiração de Ravel. Súria entregava-se aos braços de Morfeu, aconchegada em sua caminha fofinha no quarto de minha mãe. Porta trancada com a basset e território livre, para o dono do focinho de coração rosado se inspirar. Vasculhava todos cds com urgência, em busca da trilha sonora do Manda-Chuva. Descartava os inúteis pelo chão, compondo uma sinfonia barulhenta e nada inspiradora no alto da madrugada. Como se não bastasse, talvez desejasse encontrar alguma foto sua entre os livros e álbuns da estante. Com as patinhas branquinhas fazia um estranho barulho, que no alto de minha insônia mais parecia um arranhar de cordas fora do tom.

A única saída, para tentar aquietar a inspiração notívaga de Ravel era me levantar, pegá-lo no colo e massagear sua barriguinha. Às vezes eu buscava água, abria um pacotinho de sobremesa felina e ele sossegava por segundos. Até que iniciava os miados e a Súria no quarto ao lado, começava a latir compondo seu discurso de revolta canina.

Quanto tempo durou a estada de Ravel na casa da vovó? Não mais que um mês. Súria já no alto de seus quatorze anos, ou na cronologia canina, noventa e oito, não poderia mais se exceder em emoções fortes. Minha mãe parecia ter se arrependido de haver acendido todas as velas, para que eu abandonasse o sol do Equador e voltasse para as montanhas de Minas. Latidos, miados, falares, latidos, miados, falares. Lá fui eu, com Ravel na caixinha de transporte rumo a novas aventuras.   

A saída imediata, seria passar alguns dias hospedada na casa de meu irmão, no Bairro Floresta. Entre árvores, três gatos (Nana, Sabonete e Xerimbó) e dois cães (Charlote e Chaus), Ravel aterrissou bastante tímido e sem muita estripulia no novo território. Pouco acostumado com cheiro de terra e de planta, foi vasculhando com seu focinho de coração cada cheiro de plantinha. Parecia em certos momentos afiar suas unhas nos troncos de árvore ou naturalmente no andar pela areia grossa.

A recepção da dona da casa Nana não foi muito agradável, compôs uma barreira junto com seus filhos Sabonete e Xerimbó, impedindo que Ravel ocupasse a área alimentar. Possivelmente revoltado com a falta de educação dos peludos donos da casa, Ravel resolveu fazer greve de fome por uns cinco dias. Esperto e manhoso, o gato piauiense acabou ganhando de presente meu um banquete alimentar, que contemplava seus adorados sachês de salmão, frango e sardinha. Eu não podia deixar de sorrir diante de sua satisfação ao lamber os beiços, com o caldo que escorria perto do bigode.

Só ali pude perceber claramente como Ravel era um típico gato apreciador das alturas. Escolheu como seu melhor campo de visão, aconchegar-se bem no alto da estante. De lá entrevia o movimento externo da casa e se protegia de Chaos e Charlote, os boxers carinhosos que a cada lambida lhe alçavam a longa distância.

Gato tem sete vidas, ou supostamente nove. Ravel começou a gastar seu acervo de vida bem cedo. Até aí talvez já tenha perdido umas duas.