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A viagem de Ravel

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A viagem de Ravel

A viagem de Ravel

 Daniela Aragão8/03/2017

Ravel espreguiça todo o corpinho e me oferece sua pata esquerda, para que eu acaricie. Passo o maior tempo possível a contemplar cada detalhe de sua beleza felina. Gosto de acompanhar seu cuidado higiênico singular, que o faz desdobrar-se em várias posições, para atingir a limpeza absoluta do lugarzinho mais escondidinho. Creio que muitas posturas da yoga foram inspiradas nos felinos.

Ravel nasceu dentro de um pequeno apartamento e demorou um tempo considerável para que pudesse conhecer o mundo, além do quadrado da rede de proteção em torno da janela. Como meu companheiro inseparável, Ravel teve que acompanhar em um ano e meio de vida, a construção e demolição de lares. Acredito que a travessia mais dolorosa que lhe impus, foi passar cinco horas dentro de uma caixinha de transporte entre espera, conexão e voo, Teresina-Rio.

Cuidei com bastante antecedência de todos os pré-requisitos necessários, para tornar possível o embarque do meu peludo próximo a mim. O melhor e talvez menos sofrível, processo de transporte de um animalzinho de estimação de pequeno porte, hoje se faz da seguinte forma. Vacina em dia, com mais de um mês de aplicação, atestado de saúde emitido pelo veterinário, pagamento de taxa extra para embarque de animal e caixinha de transporte, nas medidas solicitadas pela companhia aérea.  

Eu e meu companheirinho de unhas afiadas chegamos ao aeroporto com o peso das minhas bagagens e a pressa em acabar com todo o procedimento, insuportável, que consiste na verificação do peso das malas, despache e esperas, que parecem intermináveis.   Ravel chorava e insistia em romper com suas garras, as grades de proteção da caixinha de plástico.

Após a conferência do peso das malas e despache, segui com Ravel até uma pequena lanchonete no corredor, para que eu pudesse degustar um cafezinho, e ele tomar suas gotinhas de tranquilizante.  Eu estava segura, de que meu peludo iria dormir o sono dos justos, junto à proteção de São Francisco.

Desfrutávamos por segundos, o prazer da cafeína e as gotinhas entorpecentes.  Subitamente, aproxima um dos funcionários da companhia, com seu uniforme branco e alaranjado, e, severamente, adverte: “A caixinha de transporte do seu animal é inapropriada para seguir viagem junto ao passageiro”. Conforme as irretocáveis prerrogativas burocráticas, a caixinha ultrapassava alguns milímetros em sua altura e poderia, então, não encaixar embaixo do banco.  Para que não perdêssemos a viagem, a única saída seria pagar mais outra taxa de acréscimo e permitir o embarque de Ravel. Ele seguiria na parte de baixo, bem longe de mim, no interior da caixinha de transporte, junto com as malas dos passageiros do voo e alguns outros animais de maior porte.

Tudo demandou uma agilidade sem limites, senti-me a própria personagem do filme alemão “Corra Lola Corra”. Se eu desse algum mínimo passo em falso, ganharia outro destino. Meus cabelos não eram tão avermelhadamente tensos como os de Lola, e meu corpo não era tão esguio como o da personagem. Mesmo assim, consegui  agilidade para correr até a fila, solicitar atendimento especial, retornar, subir até o setor de conferência de cartão de vacina animal e, finalmente,  retornar ao balcão principal. Conclui a ação em vinte e cinco minutos e sorri tensa, mas gloriosa, para o atendente que me coagiu.  São Francisco esteve conosco todo o tempo e segurou meu coração apertado, quando vi a caixinha de Ravel ser etiquetada e ele encaminhado tal qual um embrulho.

Tentei me aconchegar na desconfortável poltrona do avião e estranhei a ausência de passageiros ao meu lado. Ravel não pode embarcar debaixo do meu banco, e, no entanto, segui a viagem inteira com duas poltronas vazias ao lado. Certamente o espaço, comportaria mais de suas caixinhas de transporte. Vá entender as regras que ordenam o país tropical (creio que sejam regras internacionais. No banco, em caso de turbulência forte ou em situações piores, a caixinha pode voar longe e atingir alguém).

Aterrissei no Rio de Janeiro e me travesti de Lola novamente. Corri, corri, corri para que alcançasse rápido o lugar em que se encontrava meu companheiro de garras e bigodes pontudos. Lá estava ele, encolhidinho dentro da caixinha azul. Um senhor de cabeça branquinha, como os pelos de Ravel me abriu um longo sorriso. Entreguei-lhe o bilhete e segui caminhando com São Francisco e meu companheiro, entre miados.