SP tem 40% de médicos sem título de especialista; avanço expõe gargalos na formação
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O número de médicos generalistas, ou seja, sem título de especialista ou residência médica, avançou na última década no estado de São Paulo, passando de 46,2 mil, em 2015, para quase 80 mil neste ano, o equivalente a 40% dos profissionais paulistas. Em 2000, eles representavam 23% do total.
Os dados são da Demografia Médica do Estado de São Paulo, estudo realizado pelo departamento de medicina preventiva da Faculdade de Medicina da USP em parceria com a APM (Associação Paulista de Medicina) e a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, divulgado nesta quarta (10).
De acordo com a pesquisa, parte do contingente de generalistas, cerca de 15 mil, são médicos residentes contabilizados como não especialistas, que podem obter título nos próximos anos. Mas há um grupo crescente de profissionais que não conseguem ingressar na residência ou optam por não concluir uma especialização.
"A concorrência dobrou. As vagas de residência estão praticamente estagnadas, enquanto vem gente de todo o país tentar entrar em São Paulo. Muitos passam dois ou três anos tentando, como num vestibular. E uma parte simplesmente não entra", explica Mario Scheffer, professor de medicina preventiva na USP e coordenador do estudo.
Outro fator que pode contribuir para a não especialização é o endividamento contraído para cursar medicina. Um quinto (20%) dos 60 mil estudantes de escolas médicas privadas de São Paulo recebe financiamento por meio do Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) ou de bancos privados. "Eles não conseguem ficar mais dois a cinco anos em uma residência médica."
Há ainda relatos de que longas jornadas, assédio moral, baixa remuneração também estão entre os fatores que têm levado jovens médicos a desistir da residência.
Pesquisas anteriores apontaram que médicos generalistas estão mais presentes no SUS, especialmente na atenção primária, nas UPAs (Unidade de Pronto Atendimento), nos plantões de emergência e no Samu. "Tem mercado. O empregador público não exige especialidade para muitos postos de trabalho", diz Scheffer. No setor privado, eles atuam mais em clínicas populares e empresas de telemedicina.
O aumento de generalistas ocorre em ritmo mais acelerado em regiões como Registro, Marília, Araçatuba, Baixada Santista, Presidente Prudente e Franca, onde eles já superam 45% do total de médicos. Em contrapartida, Campinas, Barretos e a Grande São Paulo mantêm proporções menores, pouco acima de um terço.
O avanço pode trazer dificuldades para determinadas regiões na adoção de políticas que dependem de especialistas, como as que buscam redução de filas de espera em consultas, exames e cirurgias no SUS. "A especialização é fundamental para o profissional e para toda a sociedade", diz o médico Antonio José Gonçalves, presidente da APM.
A qualidade da formação na graduação é um outro fator de preocupação.
"Generalistas com formação inadequada podem comprometer a qualidade do atendimento à população. Falta um modelo de avaliação, e o apagão desse processo agrava a incerteza", afirma Scheffer.
Na semana passada, o Senado aprovou em primeiro turno um projeto de lei que cria a exigência de aprovação em um Exame Nacional de Proficiência em Medicina como condição para a inscrição do recém-formado nos conselhos regionais de medicina. O governo federal se opõe à medida e defende um modelo que avalie não apenas os estudantes, mas também as instituições de ensino.
Outro fenômeno que preocupa é o avanço dos chamados falsos especialistas.
"São cursos lato sensu que não são aceitos para efeito de registro como especialidade, mas que crescem muito. É um balaio de gatos, e os profissionais começam a reivindicar o direito de se apresentar como especialistas", diz Scheffer.
O crescimento proporcional de generalistas reflete a expansão acelerada de médicos paulistas. Na última década, a oferta cresceu muito mais rápido do que a população geral. Entre 2015 e 2025, a taxa de crescimento médico saltou de 13% para 34,2% ao ano, enquanto o avanço populacional caiu de 4,1% para 1,2%.
"Hoje temos 4 médicos por mil habitantes; em cinco anos serão 5, e em dez anos, 7 por mil", afirma Scheffer. O estado encerra 2025 com cerca de 197 mil médicos, número que deve alcançar 235 mil em 2030 e 340 mil em 2035. "Teremos excesso de médicos", ressalta o pesquisador. Entre 2025 e 2035, o IBGE projeta em menos de 1,2% o crescimento da população.
Em dez anos, quase dobrou o número de escolas médicas no estado, chegando a 87 instituições em 2025 ?só na capital paulista são 14 escolas. Elas são responsáveis por mais de 10,4 mil vagas anuais. Menos de 20% delas estão em instituições públicas. A Grande São Paulo concentra mais de 40% das vagas médicas.
"Há um avanço absurdo de cursos de medicina por todo o país que só visam lucro. No estado de São Paulo, apesar de termos faculdades sérias, também observamos a proliferação de cursos que preocupam pela má qualidade", diz Gonçalves, da APM.
Segundo Scheffer, a perspectiva de saturação de médicos afeta tanto generalistas quanto especialistas, que hoje ainda são a maioria (60%), ou 117,7 mil profissionais.
De acordo com a demografia, a oferta de áreas de especialização cresceu 160% em 14 anos, especialmente em clínica médica, medicina de família e comunidade, medicina de emergência e medicina legal. Metade dos especialistas está concentrada em apenas sete áreas médicas (clínica médica, cirurgia geral, pediatria, ginecologia/obstetrícia, anestesiologia, cardiologia e ortopedia/traumatologia) e 57% deles atuam na Grande São Paulo.
Para Scheffer, a discussão sobre a má distribuição regional de médicos perde parte da relevância diante da nova realidade. "Não há hoje nenhuma região paulista com menos de dois médicos por mil habitantes. Até Registro, historicamente desassistido, apresenta um cenário melhor."
Ele pondera, porém, que disparidades futuras ainda devem persistir em áreas de difícil retenção. A residência médica, por sua vez, cresce em ritmo bem mais lento e segue muito concentrada: dos 645 municípios paulistas, apenas 57 oferecem programas.
Um quinto das vagas fica ocioso, apesar da pressão crescente por especializações. "Combater a ociosidade e melhorar a distribuição regional das residências é fundamental para reduzir desigualdades no acesso a especialistas", diz Scheffer.
