Livro 'Mercadores da Dúvida' expõe estratégias antigas do negacionismo climático atual

Por REINALDO JOSÉ LOPES

SÃO CARLOS, SC (FOLHAPRESS) - A história do negacionismo climático, um dos pilares do discurso político de Donald Trump e da extrema direita global no último par de décadas, não passa de um monumental "déjà-vu". As motivações e a estratégia dos que dizem que a crise do clima não existe apenas repisam, com poucas variações, as tentativas de negar os riscos à saúde trazidos pelo tabaco, a gravidade de uma possível guerra nuclear ou o buraco na camada de ozônio, mostra o livro "Mercadores da Dúvida".

A obra, assinada pelos historiadores da ciência americanos Naomi Oreskes e Erik Conway, enfim chega ao Brasil ?saiu originalmente em inglês em 2010. Se é desanimador perceber que a cartilha negacionista pouco mudou, ao menos a utilidade da obra persiste pelo mesmo motivo, e pelo fato de que táticas insidiosas que antes só caracterizavam o debate público nos EUA (e, em menor grau, de outros países desenvolvidos de língua inglesa) agora ganharam o mundo de vez.

"Nosso trabalho [na época da publicação original] concentrou-se nos Estados Unidos porque, nas décadas de 1990 e 2000, o negacionismo era um problema norte-americano típico e queríamos entender o porquê", escreve a dupla no posfácio à edição brasileira que agora encerra a obra.

"Encontramos grande parte da resposta na política americana, especificamente na influência desproporcional do pensamento de ?livre mercado? e antigoverno."

De lá para cá, porém, os argumentos dos EUA foram copiados praticamente na íntegra pelo bolsonarismo, afirmam eles, com consequências desastrosas, por exemplo, para as taxas de desmatamento na amazônia durante o governo de Jair Bolsonaro. Qualquer semelhança não é mera coincidência: tanto o presidente agora encarcerado quanto seus inspiradores na América do Norte compartilham em seu DNA político o fato de serem filhotes da Guerra Fria.

Com efeito, é esse o contexto no qual o beabá do negacionismo é formulado e floresce. Além do ecossistema geopolítico dos anos 1950 em diante, porém, também há um elemento mais personalista na equação: o fato de que, diversas vezes, não são apenas os mesmos argumentos que são reciclados, mas são até as mesmas pessoas que os repetem "ad nauseam" ?eis aí os "mercadores da dúvida" do título.

Os principais integrantes dessa lista são os físicos Fred Seitz (1911-2008), Bill Nierenberg (1919-2000) e Fred Singer (1924-2020), que ocuparam postos de destaque nas universidades, no governo e em "think-thanks" ao longo de suas carreiras. Assim como muitos outros cientistas de sua geração, os anos de formação do trio como pesquisadores foram passados a serviço das Forças Armadas americanas, primeiro durante a Segunda Guerra Mundial e depois, nos anos 1950, na disputa tecnológico-militar com a União Soviética.

O ambiente da Guerra Fria fez com que os três físicos e seus aliados não só desenvolvessem um ferrenho anticomunismo como também a convicção de que apenas a mais completa liberdade de atuação para a iniciativa privada seria capaz de resolver os grandes problemas do século 20.

Foi esse combo ideológico ?somado, é claro, à remuneração oferecida por grandes empresas? que colocou os "mercadores da dúvida" a serviço das empresas do ramo do tabaco interessadas em negar os efeitos maléficos do cigarro sobre a saúde, algo que já estava fora de qualquer discussão já no começo dos anos 1960, no mínimo.

A estratégia para manter a controvérsia acesa mesmo diante das evidências tinha dois grandes pilares: 1) o emprego de cientistas aliados, por mais que muitas vezes eles tivessem pouco a ver com a área relevante de pesquisa (apostando na incapacidade do público em distinguir um físico de um biomédico, digamos); 2) a distorção da doutrina do equilíbrio jornalístico, levando órgãos de imprensa a dar o mesmo peso a ambos os lados de qualquer controvérsia, sem tentar verificar quais eram os fatos por trás de cada argumento.

Essa estratégia prosperou sobretudo com a chegada de Ronald Reagan à Presidência americana em 1981, na qual anticomunismo e fundamentalismo de livre mercado se tornaram obsessões do Partido Republicano.

O aparecimento de riscos ambientais com alcance global exigia um alcance regulatório que ultrapassava fronteiras, mas os "mercadores da dúvida" fizeram de tudo para solapar essa necessidade, seja negando os riscos dos problemas ecológicos, seja afirmando que apenas o mercado seria capaz de resolvê-los de forma eficiente e praticamente automática.

Para os autores do livro, a ladainha de eficiência econômica continua a desencaminhar governos e o público diante do desafio da crise climática.

"Em linguagem simples: quando os mercados ficam descontrolados, as pessoas sofrem", escrevem Oreskes e Conway. "Esta é a verdade fundamental que muitos neoliberais, a maioria dos fundamentalistas de mercado e todos os negacionistas do clima negam."

OS MERCADORES DA DÚVIDA

- Avaliação Ótimo

- Preço R$ 89,90 (512 págs.)

- Autoria Naomi Oreskes e Erik Conway

- Editora Quina

- Tradução Fernando Santos