'Envenenada' pelo tema, enfermeira investiga terapia com laser para tratar lesão pós-picada de serpente
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Existem pessoas que sabem desde cedo o caminho na ciência que pretendem seguir. E existem aquelas cujos projetos de pesquisa as encontram. Neste último exemplo encaixa-se o caso de Jacqueline Sachett, 46, professora da UEA (Universidade do Estado do Amazonas), reconhecida recentemente com o prêmio Para Mulheres na Ciência.
O prêmio, concedido pela L'Oréal com a ABC (Academia Brasileira de Ciências) e a Unesco, tem como objetivo fomentar e incentivar a pesquisa feita por mulheres com bolsas de R$ 50 mil. O projeto de Jacqueline investiga acidentes com animais peçonhentos, em especial as jararacas (serpentes do gênero Bothrops), e se terapias de laser podem ajudar a reduzir infecções e acelerar a recuperação do tecido no local da picada.
"As pessoas que são referência no estudo de doenças tropicais, que estudam o mesmo tema da minha pesquisa, sabem o meu nome, me citam em suas pesquisas, e isso não tem preço", disse ela à Folha após a cerimônia do prêmio, no Palácio da Cidade, no Rio de Janeiro, no começo deste mês.
"Sinceramente, nunca me vi na posição que estou hoje. Meu pai não tem ensino superior, minha mãe nunca estudou. Eu tinha um desejo de casar, de ter filhos, e hoje tenho uma rede de colaboração com o meu nome. Existem pesquisadores de renome em envenenamento do Reino Unido, da França, que me conhecem, locais onde fui palestrar e fui aplaudida. Posso ganhar mil prêmios, mas isso não vai superar a grandeza disso tudo."
A trajetória científica da mineira de Conselheiro Lafaiete foge do comum. Formada em enfermagem, sua atuação inicialmente focava a assistência clínica, em especial de pacientes com doenças renais em diálise. Até que decidiu ir além da assistência com um projeto de mestrado em nefrologia (estudo dos rins), na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), em Belo Horizonte.
Passados alguns anos, surgiu então a oportunidade de migrar para a região Norte: a abertura de vagas para enfermagem na Fundação de Medicina Tropical da UEA. O pai dela já tinha se mudado para o Amazonas e ela resolveu prestar o concurso. Passou. Uma vez lá, o tripé ensino, pesquisa e extensão a motivou a realizar um doutorado, contudo havia um problema: o programa não contemplava cursos de pós-graduação em enfermagem.
"Olhei a lista e falei, ?vou fazer doutorado em que [qual área] aqui? Não tem pesquisa em nefrologia.? Olhei a lista: leishmaniose, malária? isso não tem em Minas, eu não tenho esse domínio, como vou estudar algo que nunca vi?", pensou ela. "Surgiu o [tema] envenenamento por animais, e tinha alguma relação, primeiro porque em Minas tem vários casos, segundo porque alguns dos pacientes de diálise que eu atendia tinham sido picados e falavam que a recuperação era mais lenta, então pensei em seguir essa linha."
No ano passado, até novembro, Minas Gerais foi a segunda unidade da Federação em total de notificações por acidentes com serpentes, segundo dados do Ministério da Saúde: 3.450, atrás só do Pará (5.016). Em todo o país, houve 32.425 notificações, com 128 óbitos ?outros dois estão em investigação. É uma quantidade elevada, considerando o fato que o único tratamento disponível hoje contra as picadas de serpentes é o soro antiofídico, produzido pelo Instituto Butantan, em São Paulo.
Os principais gêneros de serpentes envolvidos em acidentes no Brasil são as jararacas, do gênero Bothrops, e as cascáveis (gênero Crotalus), excluindo-se os casos em que o agente causador é desconhecido ou as serpentes não são peçonhentas.
A tese de Jacqueline buscou entender a eficácia de antibióticos como prevenção para infecções secundárias decorrentes das picadas de serpentes. Ela recebeu orientação de Luiz Carlos de Lima Ferreira, hoje pesquisador aposentado da Fundação de Medicina Tropical, e coorientação de Wuelton Monteiro, vice-líder do laboratório dela, na UEA.
Jacqueline diz que acabou, então, "envenenada" pelo tema.
"A minha entrada no doutorado reabriu a linha de pesquisa em acidentes com animais peçonhentos [a exemplo de cobras e escorpiões]. E até hoje vem prosperando. Foi criado um centro de pesquisa, o Cepclam [Centro de Pesquisa Clínica em Envenenamento por Animais], onde Wuelton e eu somos referência."
CONSEQUÊNCIAS DA PICADA
Mesmo com a adoção de soro, cuja eficácia é total quando aplicado corretamente, existe um dano no tecido local que pode demorar a se recuperar, além de, em alguns casos, outras sequelas, até mesmo neurológicas.
"Quando a pessoa sofre o envenenamento e toma o soro, ele neutraliza o veneno circulando, mas quem já sofreu dano [no tecido] não tem tratamento no local. Nós começamos uma linha de pesquisa para tentar melhorar a qualidade de vida do paciente e diminuir as complicações locais. Uma das possibilidades é o uso de fotobiomodulação [terapia laser de baixa intensidade], já usado em odontologia, mas não ainda testada em picadas de veneno", explica Jacqueline.
Experimentos com ratos em laboratório e estudos clínicos do grupo da professora sugerem uma redução de até 50% do dano causado no tecido após o uso da fototerapia. O Cepclam é hoje o único centro no mundo onde existem ensaios clínicos para envenenamento feitos dentro de um hospital.
O recente prêmio, na avaliação de Jacqueline, pode ajudar a dar visibilidade ao tema, uma vez que o envenenamento por serpentes é uma doença tropical negligenciada, classificação da OMS (Organização Mundial da Saúde) para condições que ocorrem sobretudo em locais de baixa assistência e em populações vulneráveis.
"Espero que agora o tema seja mais difundido e que as pesquisas que contemplam essa temática tenham mais financiamento", diz a professora.
