Tainara ia ser 'feliz de novo', disse sua mãe; agora é hora de fazer justiça

Por Folhapress

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Às 21h26 desta quarta (24), véspera de Natal, eu estava me servindo da segunda taça de espumante da noite quando senti o celular vibrar. Uma notificação da Folha pipocou na tela: "FEMINICÍDIO: Após 25 dias internada, morre Tainara, que foi atropelada e arrastada por 1 km pelo ex".

Antes de falar sobre sua morte, eu queria falar sobre sua vida. Assim como eu, você era mãe de dois filhos pequenos, de 7 e 12 anos. Você tinha 31, sete a menos do que eu.

Sabemos até aqui retalhos biográficos sobre Tainara. Que morava sozinha com as crianças. Dava seu melhor para criá-las. Trabalhava no ramo do comércio eletrônico.

Dias atrás, sua mãe deu uma entrevista à GloboNews apostando que Tainara seria feliz novamente, pode apostar. Ela prometeu ser "suas pernas".

A filha de dona Lúcia teve as duas pernas amputadas porque um homem passou com um carro por cima dela. Douglas Alves da Silva agora virou réu acusado de feminicídio, suspeito de ter matado Tainara por não aceitar que ela não o quisesse mais.

"Eu estava lembrando dela, eu ensinando ela a andar", disse sua mãe à emissora. "Vou ser as pernas dela. Ela tem muito amor, vai ter muito carinho da gente, das amigas, dos familiares. Ela vai ser feliz de novo."

Lúcia vinha usando as redes sociais para atualizar sobre o estado de saúde da filha. Num vídeo, após uma das cinco cirurgias pelas quais Tainara passou, ela se mostrou confiante: "Deus é maravilhoso na nossa vida". Havia corrido tudo bem. A filha ainda estava intubada e sedada, mas "conseguiu abrir o olhinho e olhou pra mim, tipo quem diz, ?mãe você tá aqui?". Ainda está aqui. Nunca saiu do lado da filha.

Tainara morreu na véspera da data que para tantos de nós, cristãos ou não, simboliza esperança e paz. A notícia nos chegou por um novo post de Lúcia: "Oi, meus amores, boa noite. É com muita dor que venho avisar que nossa guerreirinha Tay nos deixou."

Sua filha, disse, "acabou de partir desse mundo cruel e está com Deus". "É uma dor enorme", mas ao menos o sofrimento cessou. "Agora é pedir por justiça."

Todos tiramos centenas, milhares de fotos com nossos celulares. Nunca pensamos qual delas será escolhida para nos representar na nossa morte, sobretudo se somos jovens, e morrer parece algo tão distante, quase abstrato, para quando formos velhinhas.

Um dos retratos de Tainara que se replicam por aí a mostra agachada sobre o trilho de um trem, de óculos escuros emoldurados por uma franja, jaqueta preta e sorrisinho na boca. É jovem e é linda.

Para muitas mulheres, a trilha descarrilhada precocemente é estatística manjada. Somos alvo de uma violência que não é aleatória nem excepcional, mas previsível e socialmente tolerada. E isso incomoda porque nomeia o que muitos preferem tratar como desvio individual, quando é estrutura.

O feminicídio raramente é ponto de partida. Antes dele, há muitos degraus que violentam mulheres aos poucos, dia após dia. Cada etapa produz uma espécie de morte em vida: a perda da autonomia, o medo constante, o corpo que já não é plenamente seu.

O assassinato costuma ser o último ato de um tormento contínuo e muitas vezes contemporizado por amigos que percebem abusos e se calam, por parentes que olham para o lado. Melhor não se meter.

Uma violência que a sociedade aprendeu a minimizar enquanto ainda havia tempo de interrompê-la. E que não tem classe social, raça nem ideologia. Inclusive, pode vir de homens que se vendem ao público como aliados das mulheres, acumulando biscoitos digitais com discursos feministas, enquanto na vida privada corroem a autoestima e exercem controle pelo medo sobre ex e atuais parceiras, sobre as mães de seus filhos.

Atribui-se à escritora Margaret Atwood o seguinte relato, dos anos 1980. Ela perguntou a um amigo por que os homens se sentem ameaçados pelas mulheres. Afinal, eles eram quase sempre fisicamente maiores e mais fortes, e historicamente mais bem-remunerados e poderosos.

O amigo respondeu: homens temem que as mulheres riam deles. A autora de "O Conto da Aia" questionou então universitárias a mesma coisa, com sinais trocados. E elas responderam que tinham medo que os homens as matassem.

A morte de Tainara na véspera de Natal nos lembrou que não há trégua possível enquanto violência de gênero for um assunto que mobilize apenas mulheres. Agora é pedir por justiça, guerreirinha Tay.