Justiça e policiamento concentram despesas do Brasil em ordem e segurança
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - As despesas do Brasil com o sistema de Justiça e de policiamento respondem por 88% do que é destinado pelo Estado à manutenção da ordem pública e segurança, de acordo com dados da Secretaria do Tesouro Nacional e do FMI (Fundo Monetário Internacional) analisados pela Folha.
Em termos proporcionais, o custeio da Justiça ?que abrange gastos de todos os níveis do Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública? corresponde a metade dos R$ 311 bilhões destinados pelo país em 2023 à área em valores da época, enquanto a fatia para o policiamento foi de 30%.
A reportagem analisou dados de despesas governamentais pela metodologia Cofog (Classification of Functions of Government). Desenvolvida pela ONU (Organização das Nações Unidas), essa classificação divide as despesas dos países em dez blocos, com parâmetros comuns, o que permite a comparação ao nível internacional.
A classificação Ordem Pública e Segurança mensura gastos com policiamento, sistema de Justiça, prisões, proteção contra incêndio, pesquisa e outros. Cinco em cada dez países, porém, não disponibilizaram informações, caso de Argentina e México. Outros fazem isso de forma incompleta, sem detalhar por categoria, caso dos Estados Unidos e da China.
Dentre 33 países com dados disponíveis por categoria em 2023, o Brasil foi o segundo que mais gastou com o sistema de Justiça, atrás apenas de El Salvador. Foi aplicado 1,44% do PIB, ou R$ 156,6 bilhões em valores da época, o que representa metade do investimento brasileiro para segurança.
Em 2024, a despesa cresceu, chegando a 1,55% do PIB, ou R$ 181,5 bilhões, maior percentual desde 2019, porém ainda não há dados desse ano para os demais países.
Embora o gasto com policiamento represente a segunda maior despesa brasileira em Ordem e Segurança Pública, com 1,08% do PIB investido, ou R$ 117,5 bilhões, o país aparece mais atrás na lista, em 16º lugar de 33 países. Entre aqueles à frente estão Azerbaijão, África do Sul e Somália.
"É preciso observar a desigualdade social em cada um desses países, porque em um lugar desigual você terá juízes ganhando muito dinheiro em relação à sociedade", afirma o pesquisador do Centro de Estudos em Analytics e Políticas de Segurança da FGV Bruno Pantaleão.
Ele destaca o caso da Espanha, que gastou 0,35% do PIB com o sistema de Justiça em 2023 e 1,13% com policiamento.
"Se a gente pegasse 1,1% do PIB gasto pelo Brasil com o sistema de Justiça e colocasse no policiamento, poderíamos ser um Chile", diz. Embora a violência tenha virado motivo de preocupação para os chilenos, o país tem 6 homicídios por 100 mil habitantes, uma das taxas mais baixas da América Latina.
Segundo Ursula Peres, professora de gestão de políticas públicas da USP e pesquisadora do CEM (Centro de Estudos da Metrópole), a maioria do gasto com policiamento do Brasil vai para pagar as corporações ativas e também os inativos. No sistema de Justiça, embora haja menos pessoal, os salários são mais altos e há uma disputa entre os Poderes em relação ao controle do orçamento do Judiciário.
As despesas com segurança pública no Brasil ainda não voltaram ao patamar pré-pandemia. Em 2023, o país ocupava o nono lugar entre 33 países com 2,87% do PIB na área, ante 3,12% em 2019, maior valor registrado desde 2010.
Pantaleão aponta que a redução de gastos pode ser explicada pela contração de investimentos na pandemia. Outros aspectos são a inflação e a alta do dólar, já que, segundo o pesquisador, muitos dos investimentos consideram a importação de equipamentos e tecnologia feita com base na moeda. Isso também poderia estar por trás da alta entre 2017 e 2019.
Análise na edição de 2020 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública indica outros movimentos, como o aumento nas despesas municipais e estaduais, apesar da queda no gasto da União. Também houve incremento nas despesas do Fundo Nacional de Segurança Pública e no Fundo Penitenciário Nacional com recursos de loterias após a aprovação da lei do Susp (Sistema Único de Segurança Pública), em 2018. Segundo o documento, várias unidades da Federação dependem dos dois fundos.
Para especialistas, embora o patamar de despesas na área se mantenha estagnado, o maior problema é a falta de coordenação nos gastos.
A crítica apareceu nos debates sobre a PEC da Segurança, que busca, segundo o governo Lula (PT), constitucionalizar o Susp (Sistema Único de Segurança Pública) e fundos de recursos, dando diretrizes mínimas aos órgãos de segurança do país. Ao menos isso ajudaria, diz Pantaleão, a enfrentar a falta de padrão em informações na gestão de segurança.
"É ter um repositório central de crimes, BO [boletim de ocorrência] padronizado, taxa de resolução e saber se cada crime foi resolvido ou não. O ideal é que isso seja público, como nos Estados Unidos ou na África do Sul. Mas no mínimo o Ministério da Justiça tem que ser capaz de fazer esse cálculo."
A gestão de dados para orientar os gastos poderia apresentar melhoras marginais no problema da segurança no Brasil, afirma Pantaleão, que tem no próprio desenho de policiamento uma tendência a resultados ruins.
O principal aspecto, para ele, é a separação entre patrulhamento e investigação, que, em outros países, como Canadá, Estados Unidos e Reino Unido, fica com a polícia judiciária ?as polícias civis? e algumas unidades menores são criadas e treinadas para ações ostensivas mais especializadas.
As funções reunidas sob uma única corporação são o chamado ciclo completo, que inclusive funciona melhor para orientar a gestão por meio de dados. O mais próximo do modelo razoável de policiamento que o país tem, ele defende, é o da Polícia Federal.
Peres diz que a mudança com a PEC será a coordenação sistêmica, a exemplo do que acontece com o SUS, para que as decisões sejam tomadas a partir do diálogo entre União, estados e municípios.
"Se você criar um sistema de segurança pública que englobe o policiamento e o sistema de Justiça, vamos ter que ter metas compartilhadas para ambos, monitorar e ter mais transparência de quais são as ações de cada corporação", afirma Peres.
Ela considera esse um passo essencial para o país conseguir superar os problemas na área.
"Isso é fundamental num contexto de segurança como o do Brasil, onde o crime organizado atua em todos os estados, enquanto o poder público age de forma fragmentada. A gente está enxugando gelo".
