Nome do Colunista Daniela Aragão 5/07/2016

Entrevista com o poeta Demetrios Galvão   

Daniela Aragão: Como começou a palavra em sua vida?

Demetrios Galvão: O momento em que a palavra me tocou foi por volta dos dezoito anos e não teve a ver com o universo formal da escola. Foi justamente fugindo da escola, matando aula, que descobri as bibliotecas públicas no centro da cidade. Passei então a frequentar bibliotecas quando matava as aulas e então tive um encontro profundo como os livros e com a leitura. Alcancei no primeiro momento, Manoel Bandeira, Mário Quintana, Pablo Neruda e alguns poetas piauienses, mas depois vieram os poetas rebeldes. Daí em diante a viagem já tinha iniciado.

Daniela Aragão: A biblioteca de sua escola não te instigava?

Demetrios Galvão: Minha escola não tinha biblioteca. Estudei em escolas com cara de cursinho, fast food da educação (risos), com séries que iam do primeiro a terceiro ano do ensino médio. Eu saía na hora do recreio e não voltava mais, principalmente, quando as aulas eram de física, química e matemática. Eu só assistia as disciplinas de literatura, história, geografia e biologia. Eu gostava muito de biologia.

Às vezes, na aula de literatura o professor citava um autor, eu ia então à biblioteca procurar. Um tempo depois, através do meu amigo Nelson Muniz, comecei a conhecer mais autores. Ele possuía uma biblioteca muito boa, já tinha cursado sociologia e, naquele momento, estava cursando filosofia. Foi ele que me apresentou Nietzsche, Rimbaud e me mostrou autores pertencentes a um campo, digamos, subversivo. Quando cheguei ao Rimbaud e ao Baudelaire, pensei que poderia fazer uma revolução pela literatura. Em seguida me aproximei dos escritores beatniks americanos, Ginsberg, Kerouac, Ferlinghetti, e me encontrei de fato. Na produção poética nacional, vi que existiam poetas porradas como Roberto Piva, Claudio Willer e Murilo Mendes. Tudo foi ganhando mais força em mim.

Daniela Aragão: Essas leituras eram catárticas para você?

Demetrios Galvão: Sim, pois na época eu participava de um grupo chamado GEA, que era o Grupo de estudos Anarquistas. Quando entrei para a universidade já tinha formação política, pois já havia lido Emma Goldman, Errico Malatesta e Mikhail Bakunin. Eu tinha vinte anos e uma força vital pulsava loucamente. Entendi que o melhor seria fazer as aproximações entre a literatura, o rock and roll, a rebeldia, o anarquismo e por aí segui, ouvindo The Doors, participando de manifestações e fazendo minha poesia.

Daniela Aragão: Você fez letras?

Demetrios Galvão: Não, fui fazer história e filosofia. Na época podíamos ter mais de uma matrícula numa mesma instituição pública. Em 2000 passei em dois vestibulares, para o curso de história na UESPI e para o de filosofia na UFPI. No final, me formei em história e fui fazer pós-graduação. O curso de filosofia ficou pela metade, mas nunca abandonei as leituras desse campo. Hoje tenho clareza de que a melhor escolha que fiz, foi de não ter cursado letras. Porém, história, filosofia e literatura, são campos interligados, tratam das questões humanas e isso é o que importa.

Daniela Aragão: Você entrou na universidade com o substrato literário adquirido pelas leituras esparsas e pela inserção no grupo de estudos anarquistas.

Demetrios Galvão: Certamente. Nesse caminho um elemento importante foi o fato de ter produzido um fanzine chamado Sintezine, entre 1999 e 2005. A última edição deste fanzine foi lançada na defesa de minha monografia, pois o meu “objeto” de estudo foi o universo jovem underground e os fanzines. Então já cheguei na universidade com as leituras encaminhadas e daí fui produzindo livretos e organizando saraus. Estava fazendo tudo ao mesmo tempo: lendo, escrevendo, publicando, organizando saraus e envolvido como movimento estudantil.

Daniela Aragão: Como se deu o seu florescimento enquanto escritor?

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Demetrios Galvão: As coisas foram acontecendo a partir de uma ação direta e costurando elementos da cultura underground, como também, da academia. Eu sempre misturei tudo e nunca tratei a literatura de forma sacralizada. Fui me afirmando como escritor, inicialmente, tendo consciência de que a palavra também é ação, e por isso a produção dos fanzines. Na época, eu produzia uma pequena publicação que em seguida chegava a alguns leitores. O retorno era imediato. Os saraus tiveram um papel importantíssimo nessa construção. Fui caminhando e acumulando experiências e isso não teve volta. Depois fui participando de eventos e bate papos, e esse processo foi se tornando irreversível.

Com o tempo fui formulando uma consciência mais elaborada sobre a linguagem. Compreendi que a linguagem é a grande tecnologia construtora de realidade e fui aprofundando as leituras e as práticas nesse campo. Hoje a minha poesia é bem diferente da que eu fazia no início.

Daniela Aragão: Retomando de certa maneira a estética da Poesia Marginal.

Demetrios Galvão: Do universo marginal, peguei a questão da rebeldia. No início, eu li bastante a dita “poesia marginal” e absorvi muita coisa. Depois fui encontrando outros caminhos. Mas dos poetas dos anos 70 ficou, principalmente, a atitude e o faça você mesmo. Que pra mim, se juntava a ação direta do anarquismo e dos punks. Ainda participando do GEA e convivendo com o movimento anarco-punk, encontrei vários anarco-punks escrevendo poesia de protesto e produzindo fanzines. Tinha uma rapaziada do interior de São Paulo que era a L@ Poemas – livre associação de poetas marginais, com quem eu me correspondi por um bom tempo.

Desde o princípio minha produção poética esteve ligada ao universo underground e aos movimentos de juventude. Então, a relação com os beats, foi determinante para alcançar outros níveis de linguagem. A leitura dos livros do Jack Kerouack e, principalmente, do Allen Ginsberg, foram fundamentais. Ali, eu encontrei pulsação, rebeldia e uma linguagem bem pensada.

Até hoje não me afastei dos fanzines e nem do underground. Mais do que nunca, penso na poesia e na linguagem, em geral, como um universo selvagem, poderoso, de curtos-circuitos. Mas isso, dentro de uma elaboração mais afinada, mais amadurecida. O Roberto Piva, com toda sua loucura explosiva e muito próxima da pulsação juvenil, traz uma linguagem densa e cheia de referências sofisticadas. O Piva foi muito importante pra mim, pois me ajudou a pensar a intensidade e a densidade da linguagem poética, sem cair no lugar apaziguado da poesia acadêmica ou bem comportada. Esse caminho me levou ao surrealismo e aos poetas imagéticos, como Murilo Mendes, Vicente Huidobro, Herberto Helder, etc. A dita “poesia marginal” foi uma primeira referência, que se conectou a outras. Sem necessariamente haver exclusões. Por um lado ficou a atitude e a ação pela palavra. Por outro, a consciência de que era preciso aprofundar os estudos e a prática com a linguagem, desenvolvendo melhor o cultivo das imagens poéticas.

Daniela Aragão: Sendo de Teresina, você foi tocado por Torquato Neto?

Demetrios Galvão: Fui. Li Torquato, tanto que num poema ele diz “Quando a barra pesa o poeta corta o cabelo”. Eu já tenho quase dezessete anos com os cabelos grandes. Então a barra ainda não pesou (risos). Quando pesa, eu resisto. Manter esse cabelo comprido é uma forma de resistência também, pois trabalho em espaços institucionais, espaços “caretas”. É necessária uma compensação para que eu possa sustentar o que penso. Um visual e tal. O meu currículo me ajuda a sustentar isso.

O Torquato é um poeta que me influência pela atitude, pelo pensamento, pelas ideias. Acho importante o que ele diz: “um poeta não se faz com versos”. Daí, fica a dica que o poeta tem que sair do papel e, propriamente, do verso e inventar coisas em outros espaços e com outras linguagem. Ele mesmo fez isso com o cinema de Super – 8. Essas coisas dele são profundas e uma grande lição.

Daniela Aragão: A competência, a seriedade.

Demetrios Galvão: Certamente. Então se querem minha competência e qualidade, isso eu ofereço com a garantia da permanência dos meus cabelos compridos. Eu acho legal o que o Massimo Canevacci fala, do conceito de “jovens intermináveis”, sempre miro nessa ideia dele. Continuar sempre rebelde e jovem em ideias. Isso é uma resistência louquíssima. É negar a rendição, a captura, o disciplinamento. A poesia é o meu campo de resistência selvagem. Sempre tenho um livro de poesia para os momentos difíceis (risos). Tenho sempre dito que “escrevo para me manter saudável”. Uma saúde mental e selvagem.

Daniela Aragão: Você já compôs letras de música?

Demetrios Galvão: O modo como escrevo/penso minha poesia não é muito próximo do universo da letra. Pelo menos é o que acho. Não sei compor letra de música, às vezes, digo aos amigos que podem musicar meus poemas se desejarem. Vai ter que desmontar o texto, quebrá-lo, arredondar, até porque acho que minha poesia não é adaptada ao contexto da música.

Daniela Aragão: Há poetas que fizeram tanto poesia quanto letra de música, a exemplo de Vinicius de Moraes, Cacaso e Torquato Neto.

Demetrios Galvão: Aqui em Teresina o Thiago E e o Kilito Trindade, fazem isso bem. O próprio Salgado Maranhão também percorre dois universos, a poesia e a canção. Não me atentei ainda para a composição de músicas. Até tenho experimentos com poesia no formato áudio, com improvisos, efeitos e texturas sonoras. Em 2005 fiz um cd de poesia caseiro e bem experimental, chamado “Um Pandemônio Léxico no Arquipélago Parabólico”. Esse trabalho foi pensado em um campo ruidoso, com a intenção de produzir deslocamentos, de tirar a poesia do seu lugar apaziguado. Longe daqueles CDs em que o poeta lê o texto acompanhado do silêncio. Nesse campo, eu penso a poesia conectada com o rock, com ruídos e coisas assim.

Daniela Aragão: Fale sobre seu livro inaugural “Cavalo de Tróia”.

Demetrios Galvão: Foi publicado em 2001, com a ajuda do meu irmão Dante Galvão, na perspectiva da poesia protesto. Mas rapidamente minha poesia mudou de caminho, saiu desse campo mais elementar. Digamos que da poesia panfletária deu uma guinada na direção de textos mais longos, com fluxos acelerados e intensos. Essa mudança me levou para um próximo livro chamado “Fractais Semióticos”, publicado em 2005 por meio de um concurso da FUNDAC (Fundação de Cultura do Piauí). O “cavalo de Tróia” foi um primeiro experimento que valeu muito por seu teor de ação direta, de autopublicação. Hoje em dia, quando me perguntam sobre esse livro, eu digo pra esquecerem (risos).

Daniela Aragão: Como você vê a relação academia/literatura?

Demetrios Galvão: Podemos problematizar isso de várias formas. A academia, de um modo geral, é nada literária, nada poética, pois o princípio dela é o controle das subjetividades. Os cursos de letras não discutem escrita criativa, nem criação. Acho o campo acadêmico das letras, excessivamente, técnico e sem inventividade. Quando vão para a literatura, tentam enquadrar o autor dentro de um dado quadro, de uma escola literária e a potência do se esvai. Do ponto de vista criativo, não desenrola. É preciso criar territórios alternativos dentro da academia, juntamente, aos seus pares. Deixar a mente mais arejada para se conseguir respirar um ar mais poético. Assim como Platão expulsou os poetas da república, a poesia está expulsa da universidade. Mas sei que existe uma minoria de alunos e professores/pesquisadores que fazem algo diferente e que resistem, e isso é extremamente importante. Eu estou dentro da academia, mas não deixo que ela me capture, não me seduzo com a medida quantitativa do currículo Lattes. Isso pra mim é o fim. É a morte do autor/pesquisador.

Daniela Aragão: Sua poesia foi contaminada pela academia?

Demetrios Galvão: A academia me possibilitou a leitura de bastante coisa. Foi através dela que cheguei a autores fundamentais, como Sergio Buarque de Holanda, Fritjof Capra, Paul Fayrabend, Roland Barthes, Foucault, Deleuze, Guattari, Rubem Alves e tantos outros que compõem um quadro amplo e variado da minha formação. Mais que uma formação acadêmica, uma formação do pensamento. E essas referências todas atravessam minha poesia de forma sutil. A academia é importante, mas não dá pra se reduzir a ela. A poesia foi minha ponte constante entre o dentro e o fora da universidade. Vi muito dos meus contemporâneos se resumirem a universidade, sem produzir nenhuma diferença. Serializaram-se naquela subjetividade científica, sisuda, sem poesia.

Daniela Aragão: E como se construiu esse processo acadêmico?

Demetrios Galvão: Quando terminei minha graduação passei logo para o mestrado e em seguida para o doutorado. Fiquei de 2005 a 2009 imerso na academia, até porque ela é muito exigente. Nesse período todo não consegui escrever nada relacionada à literatura. Em 2009 morei em Recife, pagando as disciplinas do doutorado. Quando retornei, participei de um coletivo de poetas chamado “Academia Onírica”, juntamente com o Kilito Trindade, Thiago E, Luiz Valadares, Laís Romero, Fagão e Ariane Pirajá. No período da Academia Onírica, produzimos intensamente. Fizemos 17 encontros poéticos e consequentemente 17 edições de um fanzine; editamos 2 edições da AO-Revista e produzimos o cd de poesia e música Veículo q.s.p., em parceria com a banda Quarteirão. Sem falar no blog, Poesia Tarja Preta, que resolvemos deixar no ar, como espaço de registro e para consultas.

Nesse ambiente, a escrita retornou com força e então minha imersão no campo literário foi tão intensa que abandonei o tal do doutorado. Se eu tivesse continuado na pesquisa, talvez não tivesse publicado os livros que fiz nos últimos anos e nem teria chegado à revista Acrobata. Então, a poesia me salvou (risos) e a “Academia” que lateja no meu corpo é a Onírica. Essa Academia da subversão artística (risos).

Daniela Aragão: Fale sobre a Revista Acrobata

Demetrios Galvão: A “Acrobata” surgiu em 2013 e pra mim, vem de um desdobramento da própria Academia Onírica. A Acrobata é uma publicação que surge do desejo incessante de não ficar parado e de se unir a outras pessoas para criar. A proposta da revista é a discussão contemporânea sobre a literatura e o audiovisual, num trabalho de mapeamento. A intenção é construir uma geografia de ideias articulando autores/artistas de varias partes de Brasil e do mundo, para compor um espaço de encontros. A Acrobata é bem esse espaço de encontros, de afetos, de estéticas, de políticas, de culturas diversas.

Hoje, a Acrobata é um trabalho bem consolidado para os seus editores, que sou eu, o Aristides Oliveira e Thiago E. Atualmente, estamos na nossa edição de nº 5 e trabalhando na nº 6. Cada edição tem sido uma grande vitória e aos poucos, estamos nos espalhando devagarzinho e chegando até as pessoas. As nossas edições são impressas, mas também podem ser encontradas na plataforma do ISSUU para leitura e download. Basta procurar no Google, é bem fácil.

Daniela Aragão: Fale sobre seu último livro “Bifurcações”.

Demetrios Galvão: Bifurcações foi meu último livro, publicado no final de 2014 pela editora Patuá e com uma apresentação do poeta Afonso Henriques Neto. Acho que esse é o meu trabalho mais bem acabado, com mais consciência da própria linguagem poética.  Esse livro tem me surpreendido bastante e penetrado espaços e pessoas que eu não imaginava. Esse trabalho difere um pouco dos meus livros anteriores, no sentido de ser mais sensível. Eu consegui encontrar um caminho interessante para caminhar por entre as bifurcações que me foram apresentadas (risos). Estou muito feliz com os resultados dele.

Daniela Aragão: O próprio título é sugestivo, aponta relações labirínticas, sinuosidades.

Demetrios Galvão: Sim, o Bifurcações conversa, de certa forma, com o livro anterior “Insólito”, mas avança nesse campo sinuoso, indireto, labiríntico. Minha escrita se concentra inteiramente na produção volumosa de imagens e é nessa fabricação de imagens que tenho aprofundado minha escrita. Geralmente, o poema aponta vários caminhos, não há linha reta, não há cartesianismo, o diálogo é inteiramente onírico. Minha escrita é fragmentada, monto uma frase, depois outra, dias depois mais outra. Por princípio criativo, a minha construção poética se dá pelo fragmento. Meus poemas adquirem várias formas até chegar ao resultado final e depois, isso ainda pode mudar. As combinações são imensas.

Daniela Aragão: Você tem disciplina para escrever?

Demetrios Galvão: Não aquela disciplina de sentar todos os dias e tentar escrever. Talvez, minha disciplina seja a de sempre estar lendo e fazendo pequenas anotações. E isso eu faço todos os dias. Podemos chamar de uma disciplina dispersa (risos). Como estou lendo o tempo todo e procurando coisas que me inspire, estou me colocando na órbita da criação e isso é o meu alimento, o que me deixa saudável, o que oxigeniza meu pensamento. Como monto um ambiente favorável, vez outra tenho um texto novo. E isso é constante. Penso que as palavras não nascem prontas e essa tem sido uma das minhas reflexões mais recentes. Tanto que escrevi um dia desses um poema chamado “De onde vêm as palavras”. Nesse poema, reflito sobre a “origem” das palavras, supondo que elas nasceram no alto da montanha e se espalharam feito pólen e que os antigos, acreditam que as palavras caíram do céu, e que ao encontrar a terra germinaram e viraram árvores. E assim o poema segue...

Vou brincando com essas suposições, até chegar ao momento em que os poetas aprenderam sobre o cultivo das palavras. Costumo selecionar palavras que me agradam, que vi em outros textos, dessa seleção deixo-as ali do lado, como numa espécie de estufa ou herbário, e vou cultivando até que elas ganhem forma pra mim. Quando estou trabalhando em um poema vou me servindo delas, vou colhendo as que me servem naquele momento. Na minha perspectiva é um trabalho que se aproxima da jardinagem.

Daniela Aragão: O poeta Salgado Maranhão em entrevista concedida a mim disse: “O poema necessita de um chá de gaveta”.

Demetrios Galvão: Depois que escrevo um tanto e começo a organizar um livro vem a revisão. Em alguns mexo, em outros não. Não tenho medo de mexer no texto, fico atento, objetivando enxugar o texto ao máximo. Esse trabalho passa pelo cultivo o qual falei. Cultivo das palavras e imagens. Uma coisa orgânica. Vou elaborando essa relação, sobretudo porque cultivo cactos e o cultivo deles é espinhoso. Machuca. Isso se dá também com a construção poética. Sempre me preocupei com a força do texto, em “Bifurcações” me concentro no equilíbrio entre força e leveza.

Daniela Aragão: A paternidade te trouxe contribuições no processo de escrita?

Demetrius Galvão: Sim, a paternidade me bifurcou profundamente (risos). Foi e está sendo, nessa condição de bicho pai, que minha escrita mudou, completamente. O campo dos afetos aflorou, intensamente. É tanto que finalizo o poema “bifurcações” dizendo “bifurcar-se é quando um filho inventa um pai”... Isso pra mim é de uma profundidade sem fundo. É o máximo da invenção do próprio sujeito. Essa tem sido a minha experiência. Uma relação de imersão em mim mesmo e no outro. Esse outro que é também parte de mim e eu parte dele. E o mais louco, é que esse outro cresce ao passo que é cultivado. Cresce no plano físico, mas, principalmente, no plano subjetivo, afetivo...

Conviver com as crianças é a experiência mais profunda com linguagem. A gramática das crianças está fora da página e da grafia correta, elas nos deslocam o tempo todo com suas visões e gestos inocentes. O mundo delas é outro, é o mundo feliz em que as coisas ainda não estão compartimentadas, reguladas, disciplinadas e isso é poesia plena.

Daniela Aragão: Há algum poeta que te instiga, atualmente?

Demetrios Galvão: Murilo Mendes é um poeta que me instiga sempre. Mas têm outros que me desassossegam bem, como o português Helberto Helder. Na verdade, nesses últimos dois ou três anos tenho estado muito próximo dos portugueses, principalmente do Antônio Ramos Rosa, da Maíra do Sameiro Barroso e da Rosa Alice Branco. Eles possuem uma poética que dialoga com o surrealismo e o fluxo das imagens oníricas. Gosto também bastante de um chileno, ainda bem desconhecido no Brasil, chamado Vicente Huidobro, esse cara é leitura de vertigem. Mas, ultimamente, estou muito apegado ao poeta sírio Adonis, com seu misticismo pagão, leve e denso. Nesse quadro, todos são meus professores de imagens.

Daniela Aragão: A poesia comporta novos suportes, como este seus poemas encapsulados “Capsular”.

Demetrios Galvão: Tenho entendido que pensar e trabalhar com a poesia é algo que está para além do verso, da tinta no papel. Na medida em que tenho minha consciência sobre a linguagem, compreendo que a poesia está em todo lugar e que por isso, ela pode assumir vários formatos e se materializar em diversos suportes. Por isso existem alguns que publicam poemas em cartões-postais, em adesivos, em pôsteres, carimbos, etc. Nesse campo os concretistas ensinaram muito. Mostraram que a linguagem era infinita e que a poesia poderia se servir disso e criar objetos e coisas do tipo.

O Capsular, que eu chamo de objeto poético, é o resultado dessa reflexão e de pensar o texto/poesia assumindo outros corpos, enquanto suporte de existência, de circulação e de experiência de leitura. Esse trabalho foi realizado em 2015 e consiste em 6 poemas meus, ilustrados pelo artista visual Rogério Narciso e com a concepção gráfica/visual do design Nonato Costa. Esses poemas e imagens estão impressos em um papel laranja com a dimensão de 10 X 60 cm, enrolado como uma espécie de papiro e colocado em um tubo de acrílico, comumente, chamado de tubete.

Daniela Aragão: Tem uma mágica.

Demetrios Galvão: Há uma magia quando você retira a poesia de dentro do tubo, ela expande. O papel é laranja e faz toda uma diferença. Quando mudamos o suporte e a apresentação, o deslocamento é grande e aí está o efeito mágico. Nesse instante estou trabalhando com o Nonato Costa em outra edição do Capsular, com novos poemas, imagens e impresso em papel de outra cor. Veja, esse é um dos aprendizados que tive com o Torquato e com os concretistas “um poeta não se faz só com versos”, ele tem que pensar outras coisas. Tem que pensar a linguagem como um todo.

Daniela Aragão: O que é a poesia para a sua vida?

Demetrios Galvão: A poesia é esticar o mundo, criar possibilidades, porque a História é muito objetiva, tem a coisa do fato, a veracidade. A poesia abre outras possibilidades, ela traz o “se” e a especulação. E se outra coisa tivesse emergido naquele instante? O próprio campo da criação do poeta é de inventar coisas. A grande conquista da poesia é o campo inventivo, a criação. A poesia é uma ogiva nuclear sensível, por menor que seja o poema, quando ele bate produz um impacto, explode dentro da gente. É maravilhosa essa coisa que atravessa o campo sensível e que, por ser sensível, amplia todas as possibilidades da existência. A poesia é, pra mim, o espaço para pensar o ético e o exercício com a liberdade, as questões estéticas, a atitude política e a linguagem como ação direta e afirmativa, e inclusive o campo espiritual, da leveza do espírito e da paz interior. Para mim a poesia resolve tudo (risos). Tenho sobrevivido com isso, trabalho feito louco, mas crio um mundo paralelo. Nunca ando sem um livro de poesia na mochila, ando com três, quatro livros de trabalho acrescido de um de poesia (risos).


Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.

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ACESSA.com - Entrevista com o poeta Demetrios Galv?o