Pode misturar

Daniela Aragão Daniela Aragão 23/12/2017

“Ah! Menina tonta/toda suja de tinta/mal o sol desponta!/Sentou-se na ponte, muito desatenta/E agora se espanta: quem é que a ponte pinta com tanta tinta...”. Ao me deparar com a super colorida capa do encarte de Partimpim2, de Adriana Calcanhotto, voltam-me a memória os versos do poema Tanta Tinta, de Cecília Meireles, que eu adorava falar bem alto e todo de cor, assim como os famosos versos de Bailarina : “não conhece nem dó nem ré/mas sabe ficar na ponta do pé./Não conhece nem mi nem fá/mas inclina o corpo para cá e para lá”. Guardo ainda em bom estado de conservação meu exemplar de Ou isto ou aquilo, que me acompanhou durante anos nos tempos de escola. Em formato A4 e com belas ilustrações de Eleonora Affonso, vou folheando o livro que traz poemas bem humorados e plenos de musicalidade. O violão e o vilão pareceu-me desde a leitura de menina pronto para ser cantado - o violão, Olivia, a viola e a vida se alternam num jogo sonoro rico em experimentações: “Não vive Olívia na vila,/ na vila nem na viola./o violão levou-lhe a vida,/levando o violão dela”. A profusão de cores e sons que jorravam dos poemas de Cecília inundou de lirismo uma parte de minha infância, assim como as canções da Arca de Noé, de Vinicius de Moraes.

Dando continuidade a poética Viniciana, começo a falar sobre Partimpim2 seguindo a ordem inversa das faixas do cd. As borboletas, poema de Vinicius de Moraes, musicado por Cid Campos, é a canção que fecha o disco em clima de pura contemplação do instante poético. Por ser encantada por borboletas, passaria um longo tempo aqui a tecer impressões sobre elas. Carrego em minhas retinas (ainda não fatigadas) a delicadeza de do cineasta Walter Lima Júnior em Inocência, ao capturar com sentido de amplitude expressiva e plástica uma borboleta. Marisa Monte suave entoa a Borboleta do folclore nordestino: “Eu sou uma borboleta pequenina e feiticeira/ando no meio das flores procurando quem me queira.” A Grande Borboleta de Caetano Veloso: “A grande borboleta/Leva numa asa a lua/E o sol na outra/E entre as duas a seta”. Gravada na casa da Partimpim, na floresta, As borboletas reproduz o som de insetos in natura. A voz puríssima da cantora, acompanhada por seu próprio violão e pelo baixo de Dé Palmeira, destaca a seiva dos versos cromáticos de Vinicius: “Brancas/Azuis/Amarelas/E pretas/Brincam/Na luz /As belas/Borboletas/Borboletas brancas/são alegres e francas/borboletas azuis/gostam muito de luz”.

Bim Bom estabelece uma homenagem vigorosa a João Gilberto, ícone da Música Popular Brasileira. Depois de um longo período guardada no baú, a canção é regravada simultaneamente por duas cantoras da mesma geração: Calcanhotto e Bebel Gilberto. Ambas herdeiras da mesma tradição, que incorpora Tom Jobim, João Donato, Chico Buarque e Dorival Caymmi. O diálogo entre Calcanhotto e Bebel frutifica faz tempo, em Maritmo, Calcanhotto imprimiu sua marca ao gravar Mais Feliz, de Bebel Gilberto, Dé Palmeira e Cazuza. Bim Bom é bonita tanto com a Partimpim, quanto com Bebel: duas leituras singulares. A interpretação de Partimpim funde João Gilberto ao Olodum, cuja memória da marcação das batidas do violão de João se mantém na mistura com o samba-olodum-baião, afirmado no canto: “É só isso o meu baião/E não tem mais nada não/ O meu coração pediu assim, só”.  Bebel já opta pela superposição de vozes ao dividir os vocais com Daniel Jobim, de tão jobiniana sua interpretação, o arranjo elaborado para a   introdução rende homenagem ao maestro soberano, autor de Fascinating Rhytm.

Impecável a gravação de O homem deu nome a todos os animais, versão realizada por Zé Ramalho para a canção Man gave name to all the animals, de Bob Dylan. A levada cheia de swing do baixo de Dé Palmeira conduzindo a introdução, remete a famosa música da Pantera Cor de Rosa, super convite para a criançada. Introduzindo o afinado coro de crianças regido por Mariana de Moraes, Partimpim não perde o apuro técnico, que seduz o público adulto e infantil. Partimpim2 é um cd mais amadurecido em relação a experiência inaugural do outro Partimpim, no atual a compositora/intérprete ousa mais nas experimentações sonoras, utiliza mais a informação da música eletrônica e dos apetrechos, que compõem o universo de barulhos do mundo infantil: latas, tralhas, brinquedos. Calcanhotto fala sobre a Partimpim: “A Partimpim carrega objetos, ela gosta de acúmulo, guarda coisas. Ela guardou todos os bilhetes e brinquedos que ganhou das crianças, é o oposto da Calcanhotto. Ela leva tudo para o estúdio, convive com aquelas coisas, e as pessoas que estão trabalhando no projeto acabam contaminadas com isso. Quando me dou conta os músicos estão lá, cheios de ursinhos.”

Na massa, de Davi Moraes e Arnaldo Antunes é a música que melhor sintetiza a liberdade - make yourself, preconizada pela Partimpim. A letra de Arnaldo contempla a criatividade das crianças que “com a mão na massa” transam seus próprios figurinos, criando moda. Além dos detalhes da letra, vale atentar para as nuances experimentais sonoras, um pianinho que soa ali, um carrinho que arranha acolá, um assovio, um barulho não identificado: “pode ser de farda ou fralda/arrastando o véu da cauda/jóia de bijuteria/ lantejoula e purpurina/manto de garrafa Pet/tatuagem de chiclete/de coroa ou de cocar/pode misturar”.

Emociona na voz da Partimpim o registro de O trenzinho do caipira, composição de Villa Lobos com letra do poeta Ferreira Gullar. Ela se apropria da canção como se dela fosse, sua interpretação traz a segurança e leveza de quem já percorreu muitos trilhos. Os ruídos do trenzinho me trazem uma certa nostalgia da poesia e da delicadeza que pouco se vê/ouve hoje em dia, mas que se revive em Parimpim2.

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