Caixinha de música: Telma Costa


[COLUNISTA_NOME] 23/04/2020

Uma caixinha recoberta por outra caixa, outra caixa, outra caixa, mais outra caixa, mais outra caixa, até criar uma caixa enorme que será caprichosamente embalada por um longo papel de presente sofisticado. Possivelmente um papel com bastante brilho e desenhos expressivos. No contorno amarra-se uma longa fita de cetim, para que a emoção do primeiro desenlace seja inesquecível.

Dificilmente uma criança se encantaria ao ganhar simplesmente uma caixinha pequena como presente. Vale o impacto da impressão da grandeza, mesmo que o envoltório não passe de um adorno barato para impactar. E assim penso que minha audição ao longo do tempo foi se transmutando da recepção de caixa grande, para pequenas caixinhas.

A caixa grande alegoriza as grandes vozes dos cantores, que permanecem como meus mitos e referências inesgotáveis e que certamente prolongarão nos meus ouvidos sua eternidade. No entanto, o transcorrer dos anos foram me conduzindo para a contínua redução das caixas.

Ganhei das mãos da pianista e saudosa matriarca musical Dona Maria Aparecida Costa, um vinil igual ao que eu avistava em destaque em sua estante. Estávamos ainda na transição entre a bolacha preta e o CD raio laser, e o disco todo com o envoltório da capa rosa, mostrando uma mulher jovem e muito bela em pose ao lado de uma orquídea, hipnotizava minha curiosidade.

Aos quinze anos aventurei-me numas aulas de canto, que guardo como legado valioso, pela oportunidade inesquecível de ter convivido com dona Maria Aparecida. Enquanto fervia a água para o café, a pianista que se tornou minha amiga e mestra no breve tempo de convivência, ia entrecruzando comentários sobre a música que havíamos ensaiado. O som que o recipiente emitia, as variações que planejava imprimir na dinâmica de suas execuções dos temas de Chopin. A matriarca, com um universo gigante e infinito de sons, só poderia ter gerado uma prole musicalmente abençoada.

“Coisa Feita”, composição de abertura do disco de Telma Costa, serviu-me como lição de aprendizado de dinâmica e divisão. A voz pequena em extensão da cantora é capaz de se expandir numa dimensão de destreza dinâmica louvável. Sua afinação impecável não suprime um átomo e passeia suave pelo desenho do arranjo de César Camargo Mariano. Telma Costa é mulher feita na plenitude da compreensão absoluta da vastidão dos meandros do tecido sonoro: “Sou de arrancar couro/De farejar ouro/Princesa do Daomé”.

“Lembra” avança na sequência e mostra bem rápido que a gravidade da dinâmica seguirá um percurso poético-sonoro cujo lirismo será seu elemento propulsor. Dori Caymmi é o responsável pelo arranjo e regência da criação de Ivan Lins e Vitor Martins: “Lembra/Que eu cheguei tão machucada/Tão dolorida e assustada/Que nem notei os teus encantos, tantos”. Robertinho Silva aparece como o baterista Roberto, já era há tempos mestre da sonoridade, mas se apresentava ainda destituído da intimidade tão brasileira do diminutivo. A condução precisa e softy da bateria de Robertinho, dialoga com os desenhos da guitarra personalíssima de Helio Delmiro. Gilson Peranzetta nos teclados, expande para a entrada do coro, com arranjo de Raymundo Bittencourt. Telma é João Gilberto, é Julie London e Barney Kessel, não, na verdade Telma é única e rara.

Dori Caymmi eleva novamente a atmosfera, com seu arranjo e regência elaborados para “Não vale mais chorar”, de Ronaldo Bastos e Toninho Horta. Instante de pura fruição quando Luiz Alves, Helio Delmiro e Peranzzetta vão escandindo numa levada puro jazz, até irem se despedindo em fade out.

O mistério da pequena caixinha, perfume precioso, souvenir que é a voz de Telma Costa que se acopla a cada arranjo, com uma precisão despida de artifício. Com sua inteligência musical a cantora nos transporta para a música em estado puro, como nas palavras do cineasta Walter Lima Junior “a melodia se encantava na voz e se revelava numa intimidade que parecia ter sido feita para aquele único instrumento”.

“Fruta Boa”, composição de Milton Nascimento e Fernando Brant dignifica o amor maturado da convivência diária. Os versos de Brant ganham um encorpamento de elevação quase sagrada na voz de Telma, que por vezes me remete à pureza de uma flauta. Seu canto cristalino deu voz à cappella a personagem Inocência, protagonista do romance homônimo de Visconde de Taunay, adaptado para o cinema por Walter Lima Junior. Fernanda Torres- Inocência debruçada na janela canta os versos de “Azulão”, de Jayme Ovalle e Manuel Bandeira.

O amor é o tema recorrente que contorna todo o ideário do álbum. Amor que aconchega com quentura terna, como quer a tão bela “Adoração”, de Lisieux Costa em casamento com a arquitetura poética de Tite de Lemos: “Sou feliz bem feliz ao seu lado/Como gato que achou o seu protetor/Quero estar, sempre contigo assim/Te dizer somente sim/O amor que é segredo guardado/No interior da pessoa bem fundo/Hoje é revelação, pois irei declarar o amor/Que me faz sobreviver ao amor, ao tempo/E à paixão”.

O amor que se distribui por cada película de verso é revestido de uma beleza que extrai permanente seiva lírica. O arranjo de cordas com violinos, violas e cellos institui uma atmosfera de feição etérea. A voz de Telma ascende em notas muito elevadas, com a suavidade de um pássaro. Aliás, sempre quando escuto Telma Costa penso que a pureza e amplitude do voo absoluto pode ser associado ao seu canto. Pássara Telma, Passarinha.

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