Faz uns três meses que não escrevo nenhuma crônica sobre canções, discos, vislumbramentos sonoros. Não que tenha deixado de ouvir músicas que me tocassem, nesse tempo passaram por meu mp3 muito Francis Hime, Edu Lobo, Rosa Emília, Lobão e principalmente Joyce. Sou fã declarada de Joyce, sempre que posso vou aos seus shows e não deixo de colocar seus CDs para escutar. Há algum tempo não sai de meus ouvidos o antigo Passarinho Urbano, gravado pela cantora em 1976. Nele pode-se ouvir a Joyce dos primórdios, com um timbre consideravelmente mais agudo e o violão espetacular. Um disco que traz um repertório absolutamente nacional, com canções que condiziam com o contexto repressivo da época como Acorda amor, Radiopatrulha, Pesadelo e Pede passagem. O belo poema Passarinho, de Mário Quintana, musicado por Joyce e que dá sugestão ao título do disco, alegoriza a necessidade de cantar como uma das saídas existenciais: “Todos esses que aí estão/ Atravancando o meu caminho/ Eles passarão.../Eu passarinho!”.
Joyce canta com a leveza e suavidade de um passarinho, o teor denso evidenciado em algumas letras é suplantado pela interpretação da cantora, que valoriza interpretações delicadas e plenas de pulsação lírica. Acorda Amor, canção antológica de Chico Buarque, ganha a bela e enxuta leitura de Joyce, em que a voz de um agudo puríssimo é acompanhada pelas batidas precisas de seu próprio violão. A sedução toma o lugar da opressão, onde Eros se sobrepõe a Tanatos, e a força maior da vida clama por espaço, como em Pesadelo, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro: “Quando um muro separa/Uma ponte une/Se a vingança encara/O remorso pune/Você vem, me agarra/Alguém vem, me solta”.
Após Passarinho Urbano, Joyce gravou muitos outros discos de qualidade indiscutível como Tardes Cariocas, Saudade do futuro, Ilha Brasil, Tudo Bonito, Banda Maluca e tantos mais. Ela é uma artista completa: compõe, canta, faz arranjos e toca muito bem violão. Embora a música popular brasileira seja povoada por uma imensidão de cantoras, conta-se nos dedos aquelas que incorporam tantas qualidades, a exemplo de Joyce.
Celebrando quarenta anos de carreira, Joyce acaba de lançar Slow Music, seu tão sonhado disco: “Este é o projeto dos meus sonhos. Sonhei com ele pela primeira vez há 10 anos atrás, e agora, finalmente, ele se materializa em sons”. Slow Music é um cd primoroso da primeira a última faixa, em que o amor é tema onipresente. O título “Slow” sugere o andamento das canções, soft, cool, em homenagem a três grandes ícones do bom gosto e elegância no gênero: Shirley Horn, João Gilberto e Bill Evans. Em termos de condução rítmica, Slow Music soa até atípico no conjunto da obra de Joyce, que vem se consolidando cada vez mais, principalmente no mercado exterior, como uma cantora fast: “eu tenho um estilo que não é nada slow, na verdade é fast pracaramba. Eu sou mais conhecida até nos trabalhos internacionais pelas músicas de andamento rápido, pelo samba jazz, pelas coisas mais swingadas, até meio dançantes e tudo, então Slow Music pra mim é uma experiência nova no sentido de buscar esse caminho”.
“Música é alimento para alma”, diz a cantora, e a idéia do disco surgiu a partir do momento em que Joyce leu o manifesto do movimento slow food, realizado na Itália. O manifesto foi redigido a partir da inauguração da primeira lanchonete MC Donalds em Roma, causando imensa revolta na população. Contra o despejo desgovernado de junk food, comida de péssima qualidade, os italianos reivindicaram o resgate e a valorização das qualidades essenciais da culinária italiana, como sabor e tempo de preparo. Assim como a junk food invade avassaladoramente os paladares dos cidadãos do mundo, a junk music também entorpece os ouvidos das pessoas, que são submergidas pela produção musical também de péssima qualidade. Joyce enfatiza que: “A gente ingere junk music pelos ouvidos e aquilo fica dentro de você o tempo todo, queira você ou não. Você está na rua, você ouve de tudo. Então a minha idéia em relação a isso era exatamente fazer um disco que pudesse ser colocado em situações de grande stress, por exemplo entrando em São Paulo pela Marginal Tietê”.
Com sua levada única, que explicita plena maturidade e domínio sobre a escolha do repertório e dos músicos que a acompanham -os três mosqueteiros - Joyce faz sua ode ao amor. O amor celebrado pela artista ultrapassa o furor do amor paixão, comumente entoado pelos representantes da junk music. Joyce canta acima de tudo o amor agridoce, vivenciado, saboroso e “madurado de carinho”, como descreve Fernando Brant nos versos de Fruta Boa.
De 1990, momento da idealização, até a gravação definitiva do cd, se passaram dez anos, tempo que Joyce alegou ter sido necessário para sedimentar com serenidade e sabedoria os amores vividos. As composições de Slow Music analisam vários aspectos do amor: amor com toques de ironia em Samba do Grande Amor (Chico Buarque), amor perturbado pelo ciúme na belíssima Medo de Amar (Vinícius de Moraes), amor sincero e por isso perigoso em Amor Amor (Sueli Costa e Cacaso), amor expressão pura de alegria em But Beautiful ( J. Burke e Van Heusen), amor separação, numa espécie de nova versão de Trocando em Miúdos em Sobras da Partilha (Joyce e Paulo César Pinheiro), amor pequeno, feito para aprendizes na delicada Valsa do pequeno amor (Joyce Moreno).
A concepção do disco ressalta a qualidade dos arranjos que primam por interpretações que dão ênfase ao caráter jazzista. O gabarito do trio de músicos composto por Tuty Moreno (bateria), Jorge Helder (contrabaixo) e Hélio Alves (piano) permitiu altos vôos sonoros. Ouvi inúmeras vezes canções como Slow Music e Valsa do pequeno amor, desfrutando de cada nuance dos improvisos. Valsa do pequeno amor é um exercício de delicadeza, inteiramente composta por Joyce a música fala dos pequenos amores que são vivenciados, numa condição de prelúdio para o almejado grande amor. A Joyce menina-mãe-mulher dos tempos de Clara e Ana, agora é a mulher-senhora, dona de uma considerável bagagem artística e existencial: “O grande amor/arte maior de iniciados/predestinados são bem poucos os mortais/é tenebroso, é embriagador/ mas só se mostra inteiro em esplendor/ pra quem viveu/ quem teve o seu pequeno amor”.
Slow Music é preciosidade de gente grande.
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