Orfandade Merlinesca


[COLUNISTA_NOME] 7/05/2020

Terminei, ontem, de assistir a primeira série que acompanhei na íntegra e com fascínio vicioso. Reservei todas as noites para comungar com minhas felinas meu encantamento por Merli, neste caso falo da série e sobretudo sobre o personagem. O Catalão é uma língua a qual nada sei falar, mas compõe um segmento de minha família, visto que minha sobrinha Tarumim e seu irmão David são filhos de mãe Catalã. Desde pequenininhos assistiam os desenhos na língua que acho linda e saborosa de quentura sensual.

Tantas coisas me fascinaram em Merli e excitaram minhas lembranças e meu lado gauche de ser, o qual já sofri, me sabotei e me sentei e sento até hoje em consultório de analista. Dá última vez, tentei de vez ser uma burocrata, fato que me conduziu a uma espécie de despersonalização. Fui voltando a mim com pé na terra, natureza, meditação, natação. De repente, a Daniela gauche começou a retornar com sua escrita, suas revisões de texto, seu canto e sua incessante sede de ouvir e ouvir música. Aos seis anos, um saudoso tio, ao me ver paralisada diante de um quadro disse apenas: "Tá perdida minha filha, você é gauche". Claro que não entendi nada.

Mas voltemos a Merli e seu gauchismo fascinante, sua maneira intensa de viver, sua sabedoria vasta e até mesmo sua vaidade. Fui convivendo diariamente com aquele homem tão sedutor, inquieto, brilhante, sagaz, generoso, afetuoso, impulsivo, engraçado e subvertor de mediocridades, como se fizesse parte de minha vida. Cada aluno e sua singularidade, os dramas da adolescência. Fui recordando de mim em sala de aula, o tanto que não tive a maturidade devida quando me apareceram os tais "alunos problema". Me recordo de uma ocasião que vivi, num contrato veloz de escola pública no ofício de professora de língua portuguesa (minha formação). Eu era a sétima professora a passar por aquela turma, após me ser confidenciado de cara pelos próprios alunos da classe que ninguém sobrevivia a eles, nem mesmo a professora oficial que pediu exoneração do cargo. As regras ali já estavam um pouco distendidas, pois eu chegava em outubro e o desejo da diretora revelado a mim foi "Me aposento em dezembro e nunca mais quero saber de escola".

Num dia resolvemos tentar flexibilizar o terrível ofício de copistas, que lhes era oferecido para a permanência do silêncio. Ou seja, os alunos copiavam todo o conteúdo do livro didático e respondiam. Altamente rica forma de aprendizado e estímulo a leitura. Perguntei-lhes se gostavam de música. Apareceu funk, reggae, sertanejo, Happ. Optei por combinarmos uma aula sobre Bob Marley, com som e direito a dançar fora das cadeiras duras de madeira.

Para complementar a atmosfera, percebi que os alunos começaram a enrolar as folhas que lhes dei com as letras da canção. "Só assim que a gente quer dançar e cantar o Bob, com o back". "A senhora tem isqueiro aí, caixa de fósforo"? O fogo eu não permiti, para evitar um incêndio ou uma expulsão da professora louca. No entanto a gente riu muito, dançou. Conversamos sobre a Jamaica, o Bob, discriminação racial.

O Merli ontem ao partir me deixou num sentido tão agudo de orfandade que chorei sozinha como criança. Merlis não existem só na ficção, mas são sopros que poucos conseguem sentir e entender.