WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) - Sinan Antoon morava nos EUA quando, em 2002, Washington começou a aventar a possibilidade de invadir o Iraque, seu país natal. Testemunhou, assim, a construção do discurso que viabilizou a guerra no ano seguinte.

Diz que ficou surpreso não só com quão rapidamente a imprensa propagou a ideia da invasão, mas com a velocidade com que o público a aceitou. Este mês marca o aniversário de 20 anos dos ataques.A guerra de 2003 influenciou de modo claro a obra de Antoon, hoje um dos grandes intelectuais iraquianos. Seu livro "Fihris" (2016) trata de um personagem obcecado em catalogar todos os efeitos da invasão, algo que ele logo percebe ser uma tarefa impossível. A editora Tabla planeja lançar outro de seus livros, "Ave Maria", no Brasil em 2024.

Um de seus aprendizados, como um iraquiano vivendo nos EUA e lecionando na Universidade Nova York, foi o de que "existe uma distribuição de humanidade, de acordo com a raça e a classe". É mais fácil, por exemplo, simpatizar com as vítimas da invasão russa da Ucrânia do que com os iraquianos.

Notou também que, quando americanos falavam sobre a guerra do Iraque, as vítimas eram seus soldados enviados à batalha, e não os iraquianos cujo país estava sendo invadido por eles. "Percebi que nossas experiências não tinham sido contadas. Era sempre a perspectiva dos bombardeadores", afirma.

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PERGUNTA - O senhor morava nos EUA quando começou o debate sobre a invasão do Iraque. Como o acompanhou?

SINAN ANTOON - Uma das coisas que sempre quis que acontecessem quando estava crescendo era o fim da ditadura de Saddam Hussein. Mas eu acompanhava a política americana e entendia que os slogans e os discursos sobre os EUA espalharem a democracia não se sustentavam, quer fosse no Oriente Médio ou na América Latina.

O que me chocou foi a rapidez com que o governo americano e a grande imprensa propagaram o discurso da guerra e quão rápido as pessoas o aceitaram. Estava claro que a guerra seria uma catástrofe não só para os iraquianos, mas também para os americanos, cujos filhos seriam enviados ao front. Desde então, me enfurece o quanto as pessoas ainda não entendem o quão faminto por guerras os Estados Unidos são.

P - As pessoas estavam interessadas no que o senhor tinha a dizer?

SA - Sim. O problema é que eu estava pregando para convertidos. Fazia palestras em igrejas, sinagogas e universidades onde as pessoas já eram contrárias à guerra. Tentei publicar textos no Washington Post e no New York Times, mas eles estavam interessados apenas em escutar os poucos iraquianos que eram a favor da invasão. O nível do discurso na grande imprensa era limitado e superficial.

Me entrevistaram em 2008, cinco anos depois do começo da guerra. Me perguntaram se os EUA tinham feito algo de bom no Iraque. Mas por que assumir que um Exército invasor teria um impacto positivo? Mesmo aqueles que se opuseram à guerra o fizeram com base em critérios de procedimento: "Não deveríamos ter ido ao Iraque sem ter informações confiáveis".

P - As redes sociais possibilitaram a expressão de outras opiniões?

SA - A memória da guerra desapareceu, exceto por pequenos bolsões nas redes sociais. Muitos dos meus colegas que lecionam em universidades americanas dizem que seus alunos não sabem nada sobre 2003.

É um país que não sabe lidar com o genocídio das populações indígenas e com o que faz com as populações de origem africana. Não tem como a gente esperar que tenham simpatia pelos iraquianos.

Mesmo quando eles falam sobre a guerra, os civis iraquianos desaparecem. Nos aniversários da guerra, a mídia trata da experiência dos soldados americanos. É essa eterna inocência americana. Nunca fui fã de Hussein, mas não tínhamos homens-bomba antes de 2003.

P - Há uma sensação de impunidade?

SA - Ninguém foi responsabilizado. O show continua. Vejo hipocrisia e racismo óbvios nos americanos quando fazem fila para condenar a invasão russa da Ucrânia. Existe uma distribuição de humanidade, de acordo com a raça e a classe.

P - Como isso afeta a sua ficção? Seu livro "Fihris" tem um personagem que quer catalogar todas as consequências da invasão de 2003.

SA - Eu estava em Bagdá em 1991 durante os bombardeiros americanos da Guerra do Golfo, escondido em porões sem luz. Quando vim para os EUA e assisti às imagens na CNN, percebi que nossas experiências, as dos civis, não tinham sido contadas. Era sempre a perspectiva dos bombardeadores.

Durante o período das sanções americanas, eu queria entender como a gente poderia medir a morte e a destruição. Meu livro começa em 2003, mas o personagem perdeu sua família em 1991. É claro que 2003 é um momento importante, mas é problemático enxergar esse ano como um começo, sem uma genealogia.

A invasão de 2003 começou em 1991. Foi uma destruição sem precedentes, que vimos diariamente. Foi uma destruição, inclusive, da ideia do que significa ser iraquiano. A invasão de 2003 mudou até a maneira com que os iraquianos pensavam em si mesmos e em seu passado. Meu livro lida com como é que as pessoas cujas vidas foram destruídas lidam com isso.

P - O personagem acaba se dando conta de que o dano da invasão foi tão extenso que é impossível catalogá-lo. O que essa imagem diz sobre 2003?

SA - É uma tarefa impossível para um indivíduo, mas ele tem que fazê-lo. Apesar de ser sobre o Iraque, é também sobre o mundo em que vivemos, do capitalismo tardio, uma máquina de destruição.

Na tentativa de terminar um projeto impossível, percebemos alguma coisa. Acho que sou contra essa ideia de redenção. Meu romance não tem fim. É circular porque não há uma lógica. Vivemos o trauma de modo contínuo e sabemos que nós, inclusive, podemos herdar um trauma.

P - Qual é o papel da ficção em refletir realidades políticas e sociais que não são sempre representadas na mídia e no discurso público?

SA - É bastante recompensador quando iraquianos encontram alívio nesses romances, que narram suas experiências. Não quero reduzir a literatura à história, mas ela desempenha um papel muito importante em prover narrativas alternativas. Em lugares como Iraque, Líbano e Síria, a literatura tem o papel adicional ser um arquivo informal. São espaços em que as pessoas podem visitar o passado de seus países. A literatura nos ajuda a entender a condição humana.

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RAIO-X

SINAN ANTOON, 56

Poeta, romancista, tradutor literário e acadêmico iraquiano, reconhecido como "um dos autores mais aclamados do mundo árabe" pelo jornal Al-Ahram Weekly, do Egito. Nasceu e foi criado em Bagdá, mas migrou para os EUA após a Guerra do Golfo. Doutor em literatura árabe pela Universidade Harvard, é professor da Gallatin School da Universidade Nova York.


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