SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Literatura escrita por jornalistas dificilmente atinge as culminâncias do discurso poético. Porém, com frequência, é capaz de apresentar um raio-X preciso da situação que se propõe a retratar. Nesse sentido, poucas descrições da sociedade russa contemporânea são tão argutas quanto "Um País Terrível", de Keith Gessen.

Andrew Kaplan, o protagonista do livro, é um judeu que migrou da Rússia para os Estados Unidos com a família, na infância. Especializado em literatura russa, busca um rumo para a vida e a carreira durante a crise financeira de 2008 quando é convocado pelo irmão mais velho para ir a Moscou tomar conta da avó, à beira da demência.

Ele encontra um cenário inquietantemente parecido com o de hoje, com a Rússia envolvida em uma guerra contra um país vizinho ?no caso, a Geórgia?, e a mídia tomada por propaganda bélica e chauvinista. A principal diferença talvez seja que, naquela época, ainda era possível ouvir a voz dissidente da rádio independente Eco de Moscou ?forçada ao fechamento em março de 2022, devido à sua cobertura da invasão da Ucrânia.

Com uma prosa coloquial e direta, Gessen entrelaça análises aparentemente despretensiosas ?mas nada superficiais? da cultura, sociedade e cotidiano russo com a narrativa de eventos do dia a dia de seu protagonista, eventos estes que, se não forem verídicos, são ao menos bastante verossímeis.

E isso vai matizando a narrativa. Conforme supera o estranhamento inicial, Kaplan vai descobrindo a Rússia à medida que se descobre. E cria-se uma tensão permanente entre o crescente fascínio de Kaplan pelos irresistíveis encantos do país e suas monstruosas contradições e problemas ? cuja percepção pelo protagonista se avoluma (e se torna mais dolorida) junto com seu afeto.

O elemento autobiográfico é óbvio: nascido em Moscou, Gessen vem de uma família que migrou para os EUA em 1981, quando ele tinha seis anos. Sua irmã mais velha, Masha Gessen, não binária e trans, é uma ativista LGBTQIA+, e crítica implacável do presidente russo, sobre o qual escreveu o livro "O Homem Sem Rosto: A Improvável Ascensão de Vladimir Putin", publicado pela Intrínseca.

E "Um País Terrível" é dedicado à sua avó materna. Porém, é possível lê-lo para além de um acerto de contas com a história familiar, ou mesmo de uma análise da Rússia no início do terceiro milênio.

Se levarmos em conta a tradição literária russa de escrever em "linguagem esopiana", ou seja, manifestar-se alegoricamente para driblar a censura do país, o livro de Gessen pode ganhar ainda outra camada de leitura. Afinal, seu protagonista se envolve com um grupo de oposição política de esquerda ao regime de Putin, intitulado Outubro.

Bem, Gessen não apenas é cofundador e coeditor da revista literária norte-americana "n+1", como se envolveu com o movimento Occupy Wall Street, chegando a ser preso durante um protesto na Bolsa de Valores de Nova York, em 2011. Ao retratar a rebeldia do Outubro e suas críticas ao neoliberalismo russo, não estaria Gessen "esopianamente" recontando a experiência do Occupy e mandando recados sobre o funcionamento dos EUA?

Há ainda uma terceira camada ?certamente involuntária no que se refere ao autor, porém de modo igualmente certo, inescapável ao leitor brasileiro de 2022. O livro fala de um país vasto, periférico, violento, corrupto, com um governo autoritário, repressivo e hostil à prática democrática. O tal "país terrível" não soa perturbadoramente familiar?

UM PAÍS TERRÍVEL

Preço R$ 94,90 (416 págs.); R$ 59,90 (ebook)

Autor Keith Gessen

Editora Todavia

Tradução Bernardo Ajzenberg e Maria Cecilia Brandi

Avaliação Muito Bom


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