SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Foi o tamanho de mais de três metros de altura por quase oito metros de comprimento que Rodolpho Parigi levou em conta quando anunciou que iria fazer a sua versão de "Guernica".
Provocado a pintar uma tela de grandes dimensões para a sua nova mostra no Instituto Tomie Ohtake --a primeira panorâmica que realiza numa instituição brasileira, com abertura nesta semana e organização de Paulo Miyada, Diego Mauro e Priscyla Gomes--, o artista queria produzir uma cena que pusesse o espectador, de uma vez só, diante de todo acontecimento, sem que ele precisasse se mover de um lado a outro para captar a imagem em sua totalidade.
Esse desejo por uma obra monumental, mas também sintética, seria impossível se Parigi tivesse como norte a arte muralista de Diego Rivera, uma referência mencionada pelos organizadores da mostra, com trabalhos que ultrapassam os 20 metros de comprimento, mas pareceu uma realidade frente à tela de Picasso.
O tamanho do quadro do pintor espanhol, que se tornou símbolo da destruição do povoado basco de Guernica pela força aérea nazista depois de concluído em 1937, não era também distante da produção do artista paulistano de 45 anos, que sempre foi adepto dos grandes formatos. A obra "La Danse", por exemplo, de 2018, chegou a cinco metros de largura.
Mas o pedido para que Parigi produzisse algo novo para a mostra no Tomie Ohtake, que tinha, a princípio, a ideia de apresentar o passado, veio pelo fato de que suas obras se movem com fluidez por diferentes gêneros da pintura, ainda que tanto as paisagens como os retratos assinados por ele desafiem qualquer tipo de convenção dentro dessas categorias.
O que aconteceria, então, se suas figuras, que transitam entre o figurativo e a abstrato, adentrassem os cenários compostos de formas que também parecem em constante mutação, no limite do natural e o artificial?
A resposta está em "Látexguernica", obra que deu nome à exposição e que capta a atenção do público logo na entrada das galerias não só por sua apreensão imediata, dado ao tamanho monumental, mas pela riqueza dos detalhes que, juntos, funcionam quase como uma cena cinematográfica.
Não é à toa que, ao falar sobre a tela, Pablo Miyada usa um vocabulário próprio no qual palavras comuns ao universo da arte --como espacialidade e volumetria-- se misturam a outras que se aproximam mais da vida noturna e da ficção científica, tais quais bestiário, "body suits", mutações, "montações", maquiagens e metamorfoses.
As expressões que Miyada toma de empréstimo são necessárias porque, para classificar sua pintura, Parigi precisou mesmo inventar uma espécie de dialeto, algo que, com alguma modéstia, ele reluta em definir como "alfabeto parigiano".
E, em sua "Guernica", esse alfabeto aparece inteiro. Ali estão os bestiários, as figuras que se baseiam na anatomia humana e tomam formas desconhecidas; os chamados "volumens", que funcionam como corpos estranhos em movimento, revestidos de um material viscoso; e os "body suits", as criaturas humanas cobertas por látex.
Mas, ao mesmo tempo em que a nova pintura funciona como síntese de tudo o que Parigi explorou nos seus 20 anos de trajetória, o que fica claro pela correlação com as outras 70 obras da mostra, ela também adentra um universo até então pouco explorado, podendo resvalar numa leitura que até o momento o artista evitou --de claro teor histórico e político.
Em "Látexguernica", há um glossário de referências estéticas -como a poltrona "Mole" de Sergio Rodrigues, que, nas mãos do artista, derrete, ou uma escultura de Érika Verzutti, de quem Parigi é próximo-, e simbologias que ganham força através da associação de campos distintos. Fragmentos da "Guernica" de Picasso, assim, convivem com uma urna funerária do povo marajoara, frutos tropicais, obras de Tarsila do Amaral e o Congresso Nacional.
"A 'Guernica' é o pano de fundo da pintura e as coisas que estão ali -sobre identidade, sexualidade- não estão como ilustração, mas são assuntos", diz Parigi. A representação de um pequeno falo, segundo ele, também é uma alusão à "grande quantidade de caras, héteros, que fazem o que fazem com o Brasil".
"São esses falos, duros, parados, que falam 'nós mandamos e vocês obedecem'. Quis pôr isso no fundo, pequenininhos, para mostrar que são parte do passado. O presente é o que está na frente, essas formas se dissolvendo e se transformando em outras", ele resume.
Quando começou o projeto de "Látexguernica", que levou ao todo três meses -com dois de trabalho ininterrupto e a ajuda de cinco assistentes-, Parigi tinha a ideia de realizar uma pintura histórica, ainda que, depois de finalizada, a entenda como épica. Sabia que partiria de uma base de mármore e teria "O Impossível", de Maria Martins, no centro do quadro.
"Acho essa escultura super-alienígena, o que representa muito para mim, mas ela fala da impossibilidade das relações e da impossibilidade diante de todos esses vírus, Covid, varíola dos macacos, HIV, que são atribuídos muitas vezes a pessoas como eu", afirma.
O artista, que esboçou de início uma imagem violenta, mudou a direção no meio do processo ao se deparar com uma fala de RuPaul, uma de suas referências no universo pop, de que, para a comunidade LGBTQIA+, era necessário transformar o trágico em mágico.
A partir desse momento, Parigi inseriu sem medo o elemento que marcou toda a sua trajetória, a paleta de cores industriais, e "O Impossível", todo preto, ganhou toques magenta. Cor que, durante muito tempo, virou quase sinônimo do nome do artista e que, para ele, tem a beleza de traduzir o encontro entre a dor e o prazer.
"As referências do Rodolpho na história da arte e na cultura pop convergem em uma espécie de resposta por excesso e não pela crítica reativa", resume Miyada. "A resposta a todo o esforço de contenção e normatividade, seja do gosto, da forma, do comportamento, da sexualidade, aparece em seu trabalho como uma afronta e recusa de limites."
De certa forma, podemos também dizer que a sua inserção no meio da arte foi um tanto quanto afrontosa. Numa época na qual as referências da moda eram artistas como Lucian Freud e Francis Bacon, Parigi assumia gostar de Rubens, Caravaggio, Michelangelo.
Tendo a pintura tradicional como alicerce, ele criou uma receita singular, misturando nela uma paleta de cores ultrabrilhantes, influência de nomes como Neo Rauch e Franz Ackermann, com ícones da cultura pop.
Dessa forma, no início de sua carreira, os trabalhos da série "Limite" surgiram quase como um gozo, uma explosão. "Eram corpos, flores, genitais, algo super-sexual, que ninguém sabia se era retrato ou paisagem", lembra Parigi, que, em função do interesse imediato do mercado de arte, se despediu de muitos trabalhos tão logo os criou no ateliê.
Por isso, a exposição que acontece agora no Tomie é uma forma para que ele mesmo possa ver o conjunto de sua obra, o que quer proporcionar ao público habituado a exemplares avulsos por meio da reunião de peças que abrangem mais de 20 anos, de 2000 até agora.
Nesse intervalo de tempo, Parigi também pode reviver uma sensação. Quando tinha só 21 anos, ele jura ter tido, diante das telas de Rubens, a síndrome de Stendhal -doença que acelera os batimentos cardíacos e pode causar até alucinações frente à beleza de obras de arte.
Foi ali, no Museu do Prado, em Madri, que o artista diz ter descoberto o desenho, a cor, o movimento, a sexualidade, onde percebeu que, por mais que houvesse uma pintura extremamente bem executada, havia algo de libertário, com corpos, monstros, nus.
"Fiquei alucinado", lembra o pintor que, agora, depois de três meses de convivência com a sua "Guernica", "com todo respeito e ressalvas", diz ter relembrado o ímpeto que tinha nessas visitas, quando queria permanecer horas e horas olhando para uma mesma tela.
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LATEXGUERNICA
Quando 26 de agosto a 30 de outubro (terça-feira a domingo)
Onde Instituto Tomie Ohtake
Preço Grátis
Autor Rodolpho Parigi
Horário 11h às 20h
Acessibilidade
Acessibilidade Arquitetônica
Acessibilidade Arquitetônica
Há acesso e circulação sem barreiras físicas, sanitário adequado e local reservado para cadeirantes com acompanhante
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