SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Uma tarja preta cobre a expressão "ordem e progresso" numa bandeira do Brasil também negra, presa na parede na vertical, como se estivesse na posição errada. Perto da "Bandeira Afro-Brasileira", do artista Bruno Baptistelli, outra versão da flâmula nacional, assinada por Leandro Vieira, ex-carnavalesco da Mangueira, troca o tom ufanista original pela inscrição "índios, negros e pobres".
As obras que abrem a mostra "Histórias Brasileiras", que começa nesta sexta-feira no Masp, o Museu de Arte de São Paulo, imaginam histórias não oficiais para o símbolo nacional apropriado nos últimos anos pelos bolsonaristas, que deram um sentido único a ele. Estão também expostas versões da bandeira feitas durante a ditadura por artistas hoje parte do cânone, a exemplo de uma colagem de Wesley Duke Lee onde se lê "hoje é sempre ontem".
Rever criticamente a história do Brasil no momento em que se celebram os 200 anos de sua independência é o principal objetivo da maior exposição do museu neste ano. Depois de uma polêmica que quase tirou da mostra um conjunto de fotografias do Movimento Sem Terra devido a um veto do próprio Masp, "Histórias Brasileiras" acabou por incluir essas obras na montagem.
A exposição tem quase 400 obras de 250 artistas e coletivos espalhados por dois andares, contemplando pintura, fotografia, vídeo, escultura e documentos, de um arco que vai do período colonial até hoje, formando uma enciclopédia da arte brasileira.
Embora comece às vésperas do Sete de Setembro, a exposição não é uma mostra sobre a independência, afirma Adriano Pedrosa, diretor artístico do museu. "É um momento para refletir sobre as histórias brasileiras. A gente tem interesse mais em temas do cotidiano, pautas contemporâneas. Pela sucessão dos temas elencados, você vê que a gente tem mais interesse numa história social, cultural, política, que é relevante para o dia a dia das pessoas."
A julgar pelos oito núcleos da mostra, nossas histórias são de muitos conflitos ?dos indígenas pelo direito à terra que foi expropriada pelos colonizadores, do negro contra o branco, de sexualidades diversas em busca de lugar numa sociedade heteronormativa, do sujeito contra o Estado.
A ala chamada "Rebeliões e Revoltas", por exemplo, mostra a palavra "lute" em letras vermelhas gigantescas no meio da galeria, tecendo relações entre a escultura de Rubens Gerchman da época da ditadura com imagens dos protestos de junho de 2013 e dos atos contra o governo Bolsonaro no ano passado.
Seguindo o tema do momento no circuito de arte, "Histórias Brasileiras" tem dezenas de pinturas figurativas com personagens negros, representados em cultos religiosos, em festas e em favelas, mas também como senhores de sua própria imagem.
Na ala "Retratos", o museu encomendou a artistas negros e indígenas retratos seus de corpo inteiro. Estão ali, entre outros, obras de O Bastardo, Wallace Pato, Panmela Castro e Yacunã Tuxá.
Tuxá se pintou como uma indígena de expressão séria, segurando uma bandeira do arco-íris, num quadro que aparece ao lado do clássico autorretrato sereno da modernista Tarsila do Amaral enrolada num manto vermelho ?o contraste entre ambas é evidente.
Organizado como uma pinacoteca de retratos brasileiros, o núcleo é o que ocupa mais espaço na mostra e sua ideia é questionar a tradição pictórica europeia de representação da nobreza, "geralmente homens brancos", afirma Pedrosa, listando retratos feitos por Velázquez e Rubens pertencentes ao acervo do museu. "Em 2014, não tinha uma obra de um artista negro em exposição no Masp. Eram outros tempos, né?", ele questiona, lembrando o ano em que assumiu seu cargo.
"Histórias Brasileiras" começa agora com dois meses de atraso depois de envolver o museu numa discussão que extrapolou o mundo da arte. Ao vetar a inclusão de algumas fotos do Movimento Sem Terra e de comunidade indígenas durante a produção da mostra, o Masp virou alvo de críticas da opinião pública quando as curadoras do núcleo com tais obras cancelaram toda a seção.
O museu negou a acusação de censura e afirmou que a exclusão das imagens se devia a uma questão de prazo. Por fim, voltou atrás e adiou a abertura da mostra para que os trabalhos de André Vilaron, João Zinclar e Edgar Kanaykõ Xakriabá fossem incluídos e o núcleo do qual fazem parte, montado.
Chamada "Retomadas", essa ala mostra uma imagem na qual a índia Tuíra Kayapó encosta um facão no rosto do ex-presidente da Eletronorte e, claro, as fotografias vetadas. "Retomadas", afirma a curadora Clarissa Diniz, é uma expressão usada desde a década de 1980 pelos movimentos indígenas e também se aproxima das lutas pela reforma agrária.
"Então ele é um termo abrangente para falar da luta pelo território." Mas pode ter outros significados, acrescenta ela, como a retomada do próprio gênero, exemplificado pelo trabalho de Nídia Aranha ?a artista pôs numa ampola o leite produzido por seu corpo trans feminino.
Pedrosa, o diretor do museu, conta que a polêmica com o núcleo fez a instituição "rever vários processos, fazer uma análise interna, de coisas que poderiam ser aprimoradas". "A gente como museu é bem engajado nos debates contemporâneos. Quando você se engaja mais, você acaba mais suscetível a esse tipo de questionamento. Essas coisas são mais difíceis e desafiadoras do que você fazer exposições do século 19 ou sobre a Semana de Arte Moderna de 1922", diz.
Ainda segundo Pedrosa, o imbróglio fez com que "Histórias Brasileiras" tivesse sua duração encurtada para pouco mais de dois meses em relação aos quatro previstos inicialmente, mesmo que esta seja a exposição com maior investimento de recursos humanos do museu neste ano, com quase todos os curadores e produtores da casa envolvidos, além de vários profissionais externos convidados.
Não é possível estender o prazo porque o subsolo do museu precisa ser liberado para o jantar anual de arrecadação de fundos, em novembro, evento que "gera um recurso enorme", afirma o diretor.
Além de pôr em discussão o papel do museu, a polêmica vai espalhar mais as obras de certos artistas e talvez atrair mais público. Atendendo a um pedido das curadoras de "Retomadas", o Masp vai distribuir aos visitantes impressões das fotos inicialmente vetadas de João Zinclar, André Vilaron e Edgar Kanaykõ e ampliar a entrada gratuita para dois dias na semana enquanto a mostra estiver em cartaz.
HISTÓRIAS BRASILEIRAS
Quando De 26 de agosto a 30 de outubro (de terça-feira a domingo)
Onde Masp - av. Paulista, 1578, São Paulo
Preço R$ 50; grátis às terças e quintas
Horário terça, das 10h às 20h; de quarta a domingo, das 10h às 18h
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