SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Sentados à mesma mesa redonda, no restaurante Circolo Italiano, em São Paulo, os juristas Almino Affonso, 93, Flávio Bierrenbach, 82, e José Carlos Dias, 83, não escondem o orgulho nem a apreensão. Foi ali que tiveram a ideia da "Carta aos Brasileiros" e do ato público em agosto de 1977, na Faculdade de Direito da USP. Manifesto e manifestação pautaram a luta pela democracia no Brasil dali até 1985.

O movimento iniciado naquele almoço inspirou a atual "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito", que articulou diferentes setores da sociedade de maneira inédita.

O documento defende as urnas eletrônicas e sustenta que o resultado das eleições deve ser respeitado, sem citar o atual presidente, Jair Bolsonaro (PL). Nasceu com cerca de 3.000 subscritos, entre juristas, banqueiros, artistas e empresários, e angariou mais de 870 mil assinaturas. Como no ato de 45 anos atrás, a carta será lida nesta quinta (11), a partir das 10h, no mesmo Largo São Francisco. Atos simultâneos estão previstos para outros pontos da cidade e das cinco regiões do país.

Em 1977, Bierrenbach era vereador de São Paulo pelo MDB e participou ativamente da elaboração de planos de segurança e de fuga criados em torno do ato em que o professor Goffredo da Silva Telles Jr. subiu à tribuna no pátio da faculdade para criticar o governo militar que havia torturado, matado e desaparecido com tantos. "Você não me encontrará em nenhuma das fotos do ato porque fiquei na porta do elevador dos professores, de olho nos dois portões de entrada, nas escadarias e no pátio", lembra ele.

Quem mais transparecia medo e angústia era o próprio professor Goffredo, que chegou a dar orientações para a mulher, a advogada Maria Eugênia Raposo da Silva Telles, caso algo lhe ocorresse.

Já em 2022, uma das convidadas para ser oradora principal do ato pediu à organização que sua identidade fosse mantida em sigilo por questões de segurança. "As pessoas que participaram do ato de 1977 correram riscos reais", afirma Bierrenbach. "Hoje, não vejo risco semelhante porque temos mais de meio milhão de pessoas conosco", diz, referindo-se ao apoio obtido pelo manifesto de agora.

Dias, que se consagrou como advogado de defesa de mais de 500 perseguidos políticos pela ditadura, diverge: "Sob certo aspecto, nós vivemos hoje um momento mais perigoso. Em 1977, a violência vinha dos agentes do Estado. Agora, há um armamento de milícias, com a possibilidade de pessoas portarem essas armas, o que torna maior o risco de atos de violência. É uma violência que vem de baixo".

Desde os decretos do atual presidente que flexibilizaram a posse de armas no país, vendas e registros de armamentos dispararam no Brasil. "De certa maneira, tenho mais angústia agora do em 1977", diz Dias.

?À convite da reportagem, os três juristas se reencontraram na mesma mesa do almoço de 45 anos atrás para relatar os bastidores da iniciativa que desafiou a ditadura militar na sequência de seus anos mais duros.

Os depoimentos foram divididos em três atos: o almoço que deu origem à ideia da carta, a carta que organizou denúncias e aspirações da resistência democrática, e as tensas preparações para o ato de leitura do manifesto, concluído com o imperativo "Estado de Direito já!", atualizado em 2022 para "Estado democrático de Direito sempre".

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O ALMOÇO

Era mais um almoço como tantos aqueles que os três juristas, conhecidos de longa data, vinham fazendo desde que Affonso havia voltado do exílio, em 1976. Bierrenbach era seu conhecido dos tempos de movimento estudantil, e Dias era seu advogado de defesa nos processos por crimes políticos.

Temas recorrentes eram a revolta e o medo provocados pelo recrudescimento das ilegalidades cometidas pelo regime, expressas na morte sob tortura do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e do operário Manoel Fiel Filho, em 1976, ambas divulgadas como suicídios. Em 1977, o Congresso havia sido fechado. E estudantes e trabalhadores que se levantavam em meio a uma nação silenciosa eram presos.

Secretário de Segurança Pública, o famigerado coronel Erasmo Dias comandava a polícia e havia proibido qualquer manifestação pública em São Paulo, incluindo passeatas, comícios e concentrações.

Mas o que pesou mesmo naquele almoço foi uma indignação simbólica. As comemorações dos 150 anos de fundação dos cursos jurídicos no Brasil seriam lideradas pelo ex-diretor da faculdade, Alfredo Buzaid, ex-ministro da Justiça de Emílio Garrastazu Médici, general que comandou os anos de chumbo do regime.

Entre o vai e vem de garçons, lasanhas e espaguetes, sob o ruído de pratos e talheres, o debate naquela mesa se inflamou. Fariam um manifesto de impacto para ser lido antes das celebrações de 11 de agosto. Um texto que extrapolasse as arcadas do largo de São Francisco. "Nós nos dispúnhamos a lutar pela redemocratização e, para isso, precisávamos de uma carta ao povo brasileiro", lembra José Carlos Dias.

A CARTA

O primeiro desafio era encontrar um orador à altura daquela provocação. Surgiu o nome do professor Goffredo da Silva Telles Jr., considerado um dos maiores oradores do direito, brilhante e insuspeito.

Com passado militante na Ação Integralista Brasileira (AIB), nos anos 1930, Goffredo era um homem de direita e publicara em 1965 "A Democracia e o Brasil: Uma Doutrina para a Revolução de Março", em que apresenta suas propostas para um governo militar que se propunha a "salvar o Brasil" e convocar eleições.

Essa ilusão era passado, e Goffredo estava mergulhado numa "onda de desgosto", como escreveu no prefácio da edição de "Carta aos Brasileiros de 1977". Ele vinha se manifestando publicamente sobre o Estado de Direito num quadro de perseguição, tortura e mortes provocadas pelo Estado.

Tomada a decisão, faltava o convite. Do restaurante, Affonso, Bierrenbach e Dias foram para a casa de Goffredo, a poucos metros dali, onde estava também Maria Eugênia.

Segundo o professor, em suas memórias, Dias tomou ar solene e disse que ele e seus dois colegas estavam ali em uma missão. "Senti o coração bater no peito", escreveu Goffredo. "Aquele pedido se casava maravilhosamente com o projeto que fervilhava em meu espírito."

Depois de redigir o texto principal de repúdio à ditadura e de defesa do Estado Democrático de Direito, Goffredo fez cerca de cinco encontros em sua casa com o trio, que deu palpites sobre o documento.

Enquanto o grupo circulava a carta para colher assinaturas ?e se decepcionar com algumas recusas?, também passou a pensar na segurança do ato. "Goffredo estava atemorizado, angustiado, o que era natural naquele contexto", afirma Bierrenbach. "Precisávamos de um plano para dar confiança a ele."

O ATO

O ano de 1977 foi marcado por truculências por parte da polícia sob o comando de Erasmo Dias, o Coronel Sinistro, como era conhecido. Espancamentos, agressões graves e prisões haviam se tornado comuns.

Dois meses antes do ato programado, o coronel havia ameaçado entrar na Faculdade de Direito para prender estudantes numa operação que mobilizou, segundo Goffredo, "dois brucutus, seis carros da Rota, dois carros-tanques dos bombeiros, um caminhão aberto com a tropa de choque, 14 carros de radiopatrulha e três carros oficiais dos comandantes". A ameaça não era um desvario do grupo.

De cara, ficou decidido que Affonso e Plínio de Arruda Sampaio, que respondiam a processos por crimes políticos, não assinariam a carta nem tomariam parte do ato.

Affonso havia recém-retornado ao Brasil do exílio e recebia com frequência a visita da Polícia Federal em sua casa. Sua presença na faculdade poderia virar pretexto para repressão. Bierrenbach tinha acesso ao Palácio Mauá, onde ficava o Instituto de Engenharia, do qual seu pai era diretor. O estacionamento do prédio, a 400 metros do largo São Francisco, tornou-se ponto estratégico do plano de fuga do grupo.

"Deixamos três carros na garagem do palácio com as chaves no contato, prontos para sair", lembra ele. "Havia um Fusca, uma Kombi e um outro carro, todos cinzas para que não se destacassem."

Outro colega de faculdade, Cantídio Salvador Filardi, elaborou uma rota de fuga por dentro do prédio da faculdade, um suposto corredor subterrâneo que dá acesso à rua Riachuelo. A faculdade não confirma a existência da passagem. "Tem coisas que pouca gente sabe", diz Bierrenbach, com ar de mistério.

"Mas era uma coisa vaga, como quem diz: 'Na hora a gente vê'", brinca Maria Eugênia, que acompanhou o marido nessa angústia. "Nós seríamos levados para onde estavam os carros. Mas por quem? Não sabíamos. Era uma irresponsabilidade tremenda", diz, entre risos.

Na chegada ao largo de São Francisco, Goffredo e Maria Eugênia encontraram o jornalista Samuel Wainer, que estacionava na frente do convento franciscano vizinho à faculdade e descarregava folhetos com o texto da carta impressos para distribuição. "Ele disse para nós fugirmos no Fusca dele, se algo desse errado", lembra a viúva, para quem os planos, de fato, eram muitos. Mas também muito amadores.

"Quando entramos no pátio, no entanto, vimos toda aquela gente, perdemos o medo completamente."?


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