SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Há uma cena representativa do Brasil do início do século 19 no primeiro episódio de "Independências", minissérie dirigida por Luiz Fernando Carvalho, que estreia na quarta (7) na TV Cultura.
Então regente do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves ?ele se tornaria rei alguns anos depois?, dom João 6º (Antônio Fagundes) ocupa a ponta de uma mesa de jantar no Rio de Janeiro, cidade na qual a família real tinha desembarcado havia poucas semanas. Os convidados, entre eles representantes da polícia e da Igreja Católica, se servem de pedaços de carne de forma abrutalhada.
Um dos comensais é Elias António Lopes, papel de Luís Mármora, conhecido como Turco, um milionário traficante de escravos. Dom João 6º se dirige a ele para agradecê-lo pelo presente ?não uma joia nem um vinho, o Turco havia dado à família real a Quinta da Boa Vista, o local onde aqueles homens confraternizam. "Minha casa é a vossa casa", responde o Turco, sorrindo, ao monarca. Todos brindam.
O jogo de oportunismos que paira sobre a mesa em desordem é um sinal do que virá pela frente. "Não temos nada para celebrar. São 200 anos de quê? De injustiça, de fome, de racismo, de opressão? Estamos repetindo os mesmos erros há 200 anos e só existem pequenas medidas paliativas, não mudanças estruturais", afirma o diretor.
"É o meu trabalho mais triste", diz Carvalho. A frase não teria grande significado se fosse alguém de pouca experiência. Não é o caso aqui.
O diretor de 62 anos começou a trabalhar em funções técnicas no cinema com menos de 20. Na TV Globo, dirigiu novelas premiadas, como "Renascer" (1993) e "O Rei do Gado" (1996). A renovação da linguagem teledramatúrgica conduzida por ele ficou ainda mais evidente em séries como "Os Maias" (2001), "Capitu" (2008) e "Dois Irmãos" (2017), exibidas na mesma emissora. No cinema, lançou "Lavoura Arcaica" (2001), outro sucesso de crítica.
Como tem ocorrido na maior parte dos seus trabalhos, houve em "Independências" uma preparação longa do elenco e da equipe técnica. Ensaios, oficinas e conversas com especialistas ?como a professora e ensaísta Leda Maria Martins, grande conhecedora da tradição banto? se estenderam de setembro a dezembro de 2021.
Para Daniel de Oliveira, que interpreta dom Pedro 1º, foi especialmente marcante nessa fase inicial uma atividade com máscaras da commedia dell'arte, coordenada pela atriz e diretora Tiche Vianna. "Eram muitas horas por dia descobrindo os personagens pelas beiradas, sem ter acesso ao texto. Demorou para que a gente recebesse o texto", afirma o ator, que havia trabalhado com Carvalho nas duas jornadas de "Hoje É Dia de Maria" (2005).
Em fevereiro deste ano, começaram as gravações para os 16 episódios, concluídas em maio. Ao longo de todo o processo, diz o diretor, a perplexidade o guiou. "Em vários aspectos, ainda estamos nos século 19. O racismo é um exemplo", afirma.
Essa expressão de crítica e indignação permeia toda a minissérie, mas a produção não se restringe a isso. Nos instantes iniciais do primeiro episódio, em meio a imagens de ondas, uma voz feminina entoa na língua africana quimbundo (com legendas) comentários sobre kalunga, palavra com diversos significados, como mar, imensidão e morte.
Em seguida, grafismos de cores diversas ocupam a tela enquanto continuamos a ouvir o texto baseado na cultura banto. Ou seja, a originalidade do ponto de vista visual e narrativo, que caracteriza os trabalhos de Carvalho, é outra marca de "Independências".
A essa altura do texto, o leitor já deve ter percebido que a minissérie vai ao Brasil das primeiras décadas do século 19, mas não se contenta em retratar apenas a família real e as elites políticas e econômicas do Rio de Janeiro que o cercam.
Estão lá, entre outros, dom Pedro 1º, a imperatriz Leopoldina, vivida pela inglesa Louisa Sexton, Carlota Joaquina, interpretada por Ilana Kaplan, e dona Maria 1ª, a Louca, papel de Walderez de Barros. Mas também ganham vida nomes que participaram dos levantes contra o despotismo, mas que foram relegados a um segundo plano da história, como a negra baiana Maria Felipa, encarnada por Verônica Múcuna, que combateu os portugueses na ilha de Itaparica.
"Independências" se inspira em fatos reais, o que não impede a dramaturgia de criar figuras da ficção. Uma delas é Pelegrina, que conduz a narrativa de maneira onipresente. Vivida por Alana Ayoka na juventude e Isabél Zuaa quando adulta, Pelegrina é uma espécie de griote, como são chamadas as contadoras de história na África Ocidental. Representa ainda um conjunto de saberes que foram apagados ao longo da colonização.
O texto é assinado por Luiz Alberto Abreu, antigo parceiro de Carvalho, Melina Dalboni e o próprio diretor. Eles contaram, no entanto, com diversos colaboradores. O pesquisador e poeta Tiganá Santana, a escritora Cidinha da Silva e a historiadora Ynaê Lopes dos Santos contribuíram para aprimorar os diálogos e o gestual desse núcleo africano. O também escritor Kaká Wera ajudou na construção dos personagens indígenas, como Inaiá, vivida por Zahy Guajajara.
Abrir espaço a essa variedade de vozes, em geral esquecidas, não implica retratar os membros da família real como figuras repugnantes, segundo o diretor. "Tentei me aproximar de dom Pedro 1º por meio das suas forças contraditórias, as luzes, as escuridões, as fraquezas. Não quero vilanizá-lo."
Será, de qualquer forma, um imperador incomum. "Me agrada saber que não é um dom Pedro normal. Ouvi o Luiz orientando um outro ator a fazer o personagem de modo estranho e trouxe essa dica pra mim. Resolvi fazê-lo de um jeito estranho", diz Daniel de Oliveira.
Nos 200 anos do grito do Ipiranga, vem a calhar um imperador insólito e falível, sem a pose de herói eternizada no quadro de Pedro Américo.
INDEPENDÊNCIAS
Quando: estreia nesta quarta, 22h (após o Jornal da Cultura); são 16 episódios, 1 por semana
Onde: TV Cultura
Elenco: Antônio Fagundes, Daniel de Oliveira, Louisa Sexton, Ilana Kaplan, Walderez de Barros, Isabél Zuaa, André Frateschi, Verônica Mucuna
Direção: Luiz Fernando Carvalho
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