SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Zanzando, o corpo responde ao zumbido. Na fricção das cordas, o dó sustenido se arrasta no tempo, pairando no ar. A música parece parada, mas, na dança, a imobilidade da nota é só tensão. A coreografia de Alejandro Ahmed para "Sixty-Eight", obra do americano John Cage composta há 30 anos, começa com o corpo de baile agitado, cada bailarino despontando para uma direção.
O espetáculo do Balé da Cidade de São Paulo marca a estreia da peça de Cage na América Latina. Mais conhecido por "4'33", de 1952, o compositor reafirmava, no ano de sua morte, a procura pela natureza da onda sonora.
Por isso, ele não se preocupava em agradar a ninguém. Ao contrário, desejava mesmo incomodar o ouvinte. "Ainda bem que tem o balé, porque meia hora é muito tempo, você fica louco", afirma Alessandro Sangiorgi, que rege a Orquestra Sinfônica Municipal. "A música em si não me suscita grandes questões estéticas, mas ver a coreografia me ajudou muito a entender Cage."
Como nas demais obras do período, "Sixty-Eight" foi assim intitulada para indicar o número de instrumentos necessários à sua execução.
Não há partitura. O maestro controla os tempos, indicados em dois relógios --um no fosso e outro no palco. Cada músico deve tocar a mesma nota durante dois minutos. Só que o momento de entrada na nota de cada um deles pode se confundir com o tempo de saída de outro instrumentista, dando origem ao que Cage chamou de "cascata de uníssonos".
Ele exercitava ali o pensamento indeterminista, que rejeitava as técnicas tradicionais de composição, estimulando a improvisação e as surpresas do acaso.
Ahmed uniu o indeterminismo ao estudo que faz há 30 anos na companhia de dança Cena 11, de Florianópolis.
Ele desenvolveu uma técnica chamada de percepção física, segundo a qual a dança deve surgir em função do corpo e não fazer o corpo se modelar a partir da dança. O método desnuda como somos todos dominados pela força da gravidade.
Em "Sixty-Eight", o corpo de baile dialoga com John Cage, no desejo de expressar tudo o que é natural. Nesse sentido, os bailarinos balançam a cabeça para cima e para baixo e aparecem nus, enquanto outros vestem uma roupa preta, num jogo de liberdade e prisão.
Enquanto isso, as luzes piscando indicam as entradas e as saídas das notas. Mas o que se torna notável é o número de vezes em que os bailarinos caem no palco. Ahmed criou uma espécie de poética da precipitação, o que tem tudo a ver com a proposta de Cage. Quando menos se espera, um corpo se estatela no palco, explorando o som que a queda produz. "Cair não é um acidente, é um modo de controle como uma aterrissagem", afirma Alejandro Ahmed.
O programa do Municipal, porém, é antecedido por outro espetáculo. Em "Inacabada", o britânico Ihsan Rustem criou uma coreografia para a sinfonia número oito do austríaco Franz Schubert, um dos primeiros compositores do romantismo. Os dois espetáculos, portanto, não poderiam ser mais díspares.
"Eu pensei que iria tomar pedradas", diz Cassi Abranches, diretora artística do balé. "Mas vejo que as pessoas entendem a nossa proposta como um contraponto interessante entre as duas peças."
Pouco se sabe sobre a história da sinfonia "Inacabada", embora seu nome já indique a dramaticidade dos dois movimentos que chegaram ao século 21. Tudo em Schubert remete à sua aura romântica --uma obra que nunca terminou, o pouco reconhecimento que teve em vida, a morte precoce, aos 31 anos de idade.
Se o programa do balé se alicerça no contraste entre as obras, a própria sinfonia executa a exploração de um jogo entre a luz e a sombra. Os dois movimentos poderiam ser peças autônomas, porque pouco dialogam entre si durante todo o espetáculo.
O primeiro deles começa por uma linha de contrabaixos, que logo se recolhem em "pizzicato". O oboé se mostra, porém, o protagonista da peça. A tensão da música é distendida por sua melodia, amplificada do centro da orquestra, se derramando no teatro.
A coreografia de Rustem trabalha com as ideias de perspectiva e simultaneidade. Primeiro, surge um corpo estendido no palco. As cortinas em elevação desvelam profundidade, provocando uma ambiência de mistério e um jogo de perspectivas.
Para abarcar o drama, uma instalação com folhas de partitura lembra tudo o que não conhecemos. Algumas delas caem de mansinho no chão do palco, enquanto dois bailarinos confundem seus corpos.
A plasticidade de braços e pernas compõe as diferentes faces do compositor --até alcançar a sua totalidade. "Queria alcançar o que não é revelado e o que está inacabado em nossas vidas", conta Rustem. "Isso é Schubert."
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BALÉ DA CIDADE DE SÃO PAULO
Onde: Theatro Municipal - pça. Ramos de Azevedo, s/nº, São Paulo.
Quando: Às quartas, às 17h; às quintas e sextas, às 20h; e aos sábados e domingos, às 17h.
Quanto: R$ 10 a R$ 80
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