SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em sua 79ª edição, o Festival de Veneza teve uma de suas premiações mais inusitadas.

Diante da chance de consagrar pela primeira vez um longa dirigido por uma pessoa negra ?o favorito "Saint Omer", da franco-senegalesa Alice Diop? ou de laurear a obra de um cineasta que não pôde ir a Veneza por estar preso em seu país ?caso do iraniano Jafar Panahi, com seu "No Bears"?, o júri comandado pela atriz Julianne Moore preferiu premiar um documentário bem recebido, mas que quase ninguém imaginava que poderia levar o Leão de Ouro.

"All the Beauty and the Bloodshed", ou toda a beleza e o derramamento de sangue, da americana Laura Poitras, saiu consagrado do festival italiano.

Também é, de certo modo, uma escolha política ?o documentário mostra a famosa fotógrafa americana Nan Goldin em sua atual luta contra a poderosa família Sackler, bilionária, que financia museus importantes em todo o mundo, mas que também é dona de um laboratório que fabrica um remédio altamente viciante, que segue vendido com facilidade nos Estados Unidos. Goldin já foi viciada no medicamento e há anos tem organizado protestos contra a sua venda em seu país natal.

Mas a briga de Goldin é, antes de mais nada, uma desculpa para Poitras contar a história dessa grande fotógrafa, que foi uma das principais artistas da cena underground de Nova York de a partir dos anos 1970. Ela ficou conhecida por imagens que captam ao mesmo tempo o aspecto glorioso e decadente de pessoas entregues ao hedonismo, geralmente captadas em festas e depois de relações sexuais.

É sem dúvida um documentário empolgante, muito bem feito ?Poitras, que já ganhou o Oscar de documentário por "Citizenfour", sobre Edward Snowden, em 2015, dispara agora no favoritismo à estatueta dourada do ano que vem na categoria. Não era, no entanto, o filme mais impactante ou desafiador em Veneza.

Mas o documentário apresenta uma questão que dá uma amostra da tônica temática dos longas exibidos neste ano no Lido. Vemos no filme que Goldin era inquieta desde pequena, e o conflito dela com os pais conservadores só potencializou o seu lado mais rebelde e iconoclasta.

As relações conturbadas entre pais e filhos, sobretudo as diferenças geracionais que levantam tensões, foram o grande assunto dos filmes da competição veneziana deste ano.

A Marilyn Monroe de "Blonde", de Andrew Dominik, por exemplo, nunca superou a falta do pai, que a abandonou muito cedo. Assim como fizeram os genitores de "Love Life", de Koji Fukada, e de "The Whale", de Darren Aronofsky.

Já as mães são as principais causadoras de inseguranças de suas crias em filmes como "The Eternal Daughter", de Joanna Hogg, em que Tilda Swinton interpreta mãe e filha que nem sequer conseguem jantar juntas sem que haja um clima de tensão, em "Monica", de Andrea Pallaoro, em que a personagem de Patricia Clarkson expulsa de casa o filho que quer assumir uma identidade feminina, e em "The Son", de Florian Zeller, em que o rebento adolescente de Laura Dern prefere ir morar com o seu pai.

O conflito geracional também fica evidente na trajetória do diretor Emanuele Crialese, cuja própria transsexualidade ele explora em seu "L?Immensità", e na negação da homossexualidade do escritor Aldo Braibanti, em "Il Signore delle Formiche", de Gianni Amelio. De certo modo, esta edição é um prolongamento da do ano passado, que destacou sobretudo a questão específica da maternidade em

crise, explorada em filmes como "Mães Paralelas", de Pedro Almodóvar, e "A Filha Perdida", de Maggie Gyllenhaal.

O júri capitaneado por Julianne Moore pode ter errado na escolha do Leão de Ouro, mas premiou alguns dos melhores filmes em outras categorias. A Coppa Volpi de melhor atriz foi para Cate Blanchett, fabulosa no papel de uma regente de orquestra tirânica no poderoso filme "Tár".

Já o prêmio de melhor ator foi para um Colin Farrell em estado de graça, em "The Banshees of Inisherin", de Martin McDonagh, sobre a briga entre dois amigos. O excelente script de McDonagh, aliás, também foi premiado em Veneza na categoria melhor roteiro ?rara ocasião em que um mesmo filme ganhou mais de um prêmio no festival.

O fraco "Bones and All" também surpreendeu ao levar dois prêmios ?o Marcello Mastroianni, dedicado a atores em começo de carreira, foi para Taylor Russell, que interpreta uma canibal que se envolve com o personagem de Timothée Chalamet. O filme também ganhou o troféu mais inexplicável da premiação, o de melhor diretor para Luca Guadagnino, que, apesar de mostrar enorme talento em filmes anteriores, como "Me Chame pelo Seu Nome", desta vez fez uma obra irregular e sem brilho.

Em 2019, Moore fez com o italiano o curta semipublicitário "The Staggering Girl", e talvez a amizade entre eles explique tamanho equívoco.

O Prêmio Especial do Júri foi para "No Bears", do iraniano Jafar Panahi, cineasta que atualmente está preso no Irã, devido à defesa pública que fez de dois cineastas detidos após criticarem o governo de Teerã.

E o filme mais atordoante do evento levou o Grande Prêmio do Júri, espécie de "medalha de prata" da competição. "Saint Omer", de Alice Diop, se baseia na história verídica de uma senegalesa que matou a própria filha de apenas 15 meses.

O longa acompanha o julgamento dessa mulher, abordando questões como racismo, machismo e xenofobia.

Diop também levou o Leão do Futuro, reservado a cineastas em início de carreira. Pode ter sido injustiçada desta vez ao não levar o prêmio principal, mas seu filme tem sido tão merecidamente festejado na imprensa e no boca a boca que não há de precisar de leão dourado para conseguir a devida consagração.


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