CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) - Foi em janeiro de 2017, por volta do dia em que a morte de David Bowie completava um ano. O diretor americano Brett Morgen teve um infarto e, por três minutos, segundo ele conta, o seu coração não bateu, o levando direto para um coma que se arrastaria por cinco dias.
"Minha vida estava fora de controle, eu era um workaholic", lembra o cineasta, sentado à beira da praia, durante o último Festival de Cannes, em maio. "Eu ia morrer aos 47 anos, e tudo o que ia deixar aos meus filhos como lição era essa ideia de merda de que eles tinham de trabalhar duro."
Então, ainda na maca de um hospital, ele se lembrou de Bowie, com quem havia se encontrado dez anos antes para um projeto de filme que nunca foi para frente. "Eu sabia que ele era esse artista incrível, mas não tinha ideia da pessoa sábia que ele era e de como eu precisava das mensagens dele."
Não espanta, portanto, que em "Moonage Daydream", documentário sobre o qual Morgen se debruçou após o coma, o músico britânico ganhe ares de coach existencial, falando sobre a vida e sobre a morte em meio a uma edição lisérgica que compila entrevistas e performances ao vivo.
"Ontem, mesmo assistindo ao filme junto de outras 2.000 pessoas, eu sentia que cada frase que há ali era direcionada a mim, sobre minhas dúvidas e traumas", diz o americano, tirando a franja grisalha da frente dos óculos escuros e afrouxando o nó da gravata roxa. Na noite anterior, ele havia amarrotado todo o seu smoking enquanto dava cambalhotas no tapete vermelho ao som de "Let's Dance", hit de 1983 de Bowie, minutos antes da sessão.
Para realizar o filme, que estreia no Brasil nesta semana após uma exibição especial em Cannes, na França, Morgen teve acesso exclusivo a gravações que pertencem ao espólio do artista. "Os cinemas têm o melhor som do mundo, então eu queria criar um filme que reproduzisse a experiência de arena, e que não fosse só uma coisa biográfica. Tipo, todo mundo sabe que os Beatles nasceram em Liverpool. Não importa esse tipo de coisa, saca?"
De fato, "Moonage Daydream" pode não ser a melhor das introduções aos não iniciados no panteão de personalidades que David Bowie construiu. Ou mesmo à linha histórica que segue sua trajetória na música desde que ele surgiu, nos anos 1960, um nome na torrente que foi o rock britânico, até despontar, na virada da década, misturando folk, psicodelia, vanguarda, além de um pendor pela ficção científica kubrickiana.
Quem conhece as várias máscaras do músico vai reconhecer, por exemplo, o seu astronauta perdido Major Tom, de "Space Oddity", o escalafobético alienígena Ziggy Stardust e também o elegante Thin White Duke, que vivia à base de leite, pimenta e doses industriais de cocaína. A fase berlinense, de "Heroes", vem marcada por uma depuração no som e pelo minimalismo para que, nos idos dos anos 1980, o artista britânico caia na pista de dança em sua fase mais pop.
Embora não conte com os chamados "talking heads" -os depoimentos de terceiros que vão se sucedendo-, é possível vislumbrar detalhes biográficos entregues a pinceladas. Ficamos sabendo do garoto londrino que se entediava com a vidinha de classe média no bairro de Brixton e que teve no meio-irmão, um ex-aviador internado com esquizofrenia, seu grande introdutor ao mundo das artes.
Mas tudo o que sabemos chega da boca de Bowie. É ele quem relata sua história em entrevistas salpicadas ao longo da edição do filme, solta algumas frases de efeito, mente e se desmente -pouco importa a veracidade, é um documentário sobre performance, defende o diretor.
"O filme não é sobre Bowie, é sobre performance, porque ele estava atuando a todo tempo, isto é, se você acredita no que Bertolt Brecht diz sobre performance", afirma Morgen. O próprio encenador alemão dá as caras a certa altura do filme, empilhado junto a outras referências como Nietzsche, Issey Miyake, Fats Domino, Kaneto Shindô, Vermeer, William Burroughs, Adorno, Jack Kerouac, Fritz Lang, Lennie Dale, Man Ray, Ingmar Bergman... "Não podia ser diferente. Foi Bowie quem me introduziu à cultura."
Nesse ponto, o que fica claro é que o diretor alça o músico, um tanto merecidamente, ao altar dos nomes incontornáveis da cultura -uma antena do próprio tempo, como o artista chega a se definir, sem qualquer modéstia, numa das entrevistas mostradas no filme, embaçando as fronteiras entre o pop e o erudito.
O Bowie que emerge do filme é "o anti-Kurt", diz Morgen, comparando "Moonage Daydream" ao seu documentário musical anterior, "Montage of Heck", sobre outro roqueiro, o líder do Nirvana, montado a partir de gravações caseiras feitas pelo guitarrista meses antes de ele dar um tiro na própria cabeça.
"Kurt Cobain cantava sobre as dores da solidão, e Bowie também de certa forma, mas de uma forma mais empática. Aquele era um filme sobre morte. Esse é sobre vida, que não deixa de ser a percepção de que estamos morrendo a cada segundo."
MOONAGE DAYDREAM
Quando Em cartaz nos cinemas a partir desta quinta (15)
Produção EUA, Alemanha, 2022
Direção Brett Morgen
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