SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A mulher que narra "A Filha Primitiva" desabafa que perdeu a conta de quantas vezes sua mãe telefonava para ela por dia, "pra falar que ainda dava tempo". "Que era pra eu acordar e começar a buscar uma salvação pra desgraça que marcou a vida dela e a minha. Que essa mesma desgraça não marcasse também a vida da menina."

A garota ostenta uma visão da maternidade mergulhada em ódio e pesar, como se vê em outro trecho adiante. "Não foi o parto, não; não foi a contração, não; não foi dar o peito, não; foi a raiva que me tornou mãe."

Vanessa Passos constrói este seu primeiro romance, destacado no prêmio Kindle e publicado pela José Olympio, a partir da fúria legada de geração em geração numa família de mulheres marcadas pela brutalidade do passado e temerosas da ausência de futuro.

Não é o único livro com sensibilidade assim. Despontam na literatura reflexões sobre a reprodução da violência e do trauma dentro nas famílias brasileiras, pensando como pessoas que sofreram abuso se tornam abusivas e navegando o equilíbrio inescapável de ódio e afeto que complica essas relações.

"A raiva dá o tom do livro", diz Passos, escritora de 29 anos com doutorado em literatura pela Universidade Federal do Ceará. "São mulheres complexas, nunca nomeadas, que sofrem as mesmas violências e reagem de formas diferentes. A avó apaga a si mesma e fica apegada à fé. A mãe se ampara na automutilação e no ódio."

Curioso que uma abordagem de notas parecidas surja no romance de estreia de outro nome em ascensão na literatura brasileira, Jarid Arraes, já célebre por suas coletâneas de contos e poemas.

"Corpo Desfeito" retrata três mulheres da mesma família afogadas sob o jugo da violência doméstica --tanto por parte de homens brutamontes quanto de uma contra a outra. A escritora, nascida no Ceará há 31 anos, lembra um ditado que funcionaria bem como epígrafe de seu livro. "Pessoas traumatizadas traumatizam pessoas."

A avó da protagonista Amanda sofre com um marido que alterna entre o sumiço e a agressividade. Tanto o algoz quanto a vítima descontam suas frustrações nas outras mulheres da casa, o que ganha contornos demoníacos quando a neta passa a ser alvo de um controle rígido e fundamentalista de sua avó.

O romance surgiu, segundo Arraes, da vontade de pensar como o abuso contra crianças é naturalizado e rotineiro. "É uma violência muito aceita socialmente, uma mentalidade de punição física e psicológica como método de educação. Uma mãe que bate no filho provavelmente apanhou dos pais, assim como os avós. É muito difícil romper esse ciclo."

Se não aceitamos violência de gênero, completa ela, não há por que achar razoável agredir crianças --ambos são abusos covardes de hierarquia de poder. "Isso está enraizado na forma como aprendemos o que é autoridade. Ela é tão confundida com violência que até me questiono se é possível existir uma sem a outra."

As histórias se filiam a uma tendência avassaladora da ficção contemporânea que desmonta a ideia de que mães são poços de amor ilimitado. Mas suas propostas vão além, tecendo uma corrente trágica de mulheres lesadas desde a ancestralidade.

Aqui vale trazer outra autora de originalidade notável, que se aproxima dessas reflexões por ângulo distinto. "A Água É uma Máquina do Tempo", estreia literária da pesquisadora e artista visual Aline Motta, é um livro de poemas --por falta de expressão melhor.

A autora parte de uma investigação rigorosa sobre suas próprias ancestrais para costurar 144 páginas que mesclam versos, documentos antigos, fotografias, mapas e anotações à mão --compondo um todo que, se não busca ser coeso, tem completa coerência afetiva e intelectual.

"Deixou um rastro de leite e sangue", escreve Motta, já na primeira frase sobre a mãe de sua bisavó. A história real de Ambrosina se mistura aos poucos à de suas herdeiras e da autora, num passado que nunca se desgarra do presente.

Motta define seu trabalho como um jogo que vai da história de proporções coletivas para as micro-histórias pessoais. "Na minha pesquisa, dá para ver muitas histórias sendo repetidas e repetidas. Quem é capaz de quebrar esse ciclo de violência histórica, que acaba tendo dimensões políticas e econômicas? É possível fazer isso?"

A abordagem de Motta impressiona pelo lirismo. "Como posso distinguir os despojos dessa mãe dos restos das outras?", anota a escritora. "Te machucar era uma forma de não ser ignorada", deixa ela como frase solitária em outra página em branco. O livro se assombra o tempo todo pelo grande vazio do passado, num exercício que lembra, por exemplo, a literatura inclassificável de Saidiya Hartman.

Em "A Filha Primitiva", Vanessa Passos também mostra sua protagonista buscando preencher o vácuo de suas origens mesmo intuindo que dali só devem sair novos traumas. A própria autora diz que não faz muito tempo que "teve o espanto" de se descobrir negra, após superar o que vê como um longo processo de branqueamento.

Não é coincidência que todas as obras --e todas essas mulheres-- sejam marcadas de forma mais ou menos ostensiva pela questão racial, o que aponta para a violência fundamental, ainda presente, de um país erguido em estrutura racista e misógina.

"Muitas vezes ter um passado é um privilégio de classe", diz Passos. "E esse silêncio todo é algo que fomenta a violência."

Se a literatura pode integrar o esforço de quebrar esse ciclo perverso, Jarid Arraes lista outras medidas mais cotidianas ao comentar a gênese de seu romance. Lembra quando, aos 13 anos, ligou de um orelhão para o conselho tutelar da cidade para denunciar um caso de violência na sua família. Nada aconteceu, mas a postura da autora pouco mudou desde então.

"O mais complicado é a omissão de quem sabe e não faz nada. Quanto mais grave a situação, mais difícil tomar conhecimento dela. A gente pode cair na tentação de justificar, principalmente quando amamos as pessoas, mas precisamos aprender a interferir. Mesmo que seja desconfortável."

A FILHA PRIMITIVA

Preço R$ 44,90 (176 págs.)

Autor Vanessa Passos

Editora José Olympio

CORPO DESFEITO

Preço R$ 49,90 (128 págs.); R$ 29,90 (ebook)

Autor Jarid Arraes

Editora Alfaguara

A ÁGUA É UMA MÁQUINA DO TEMPO

Preço R$ 62,90 (144 págs.)

Autor Aline Motta

Editora Luna Parque e Fósforo


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