FOLHAPRESS - Por vezes em "Regra 34" é possível lembrar de Nagisa Oshima, aquele da sexualidade extrema, em que prazer e morte se confundem. Em outros podemos sentir algo tão estranho quanto a relação de certos personagens de Cronenberg diante da tecnologia.

Não há sinal de imitação no filme de Julia Murat, no entanto, e sim de uma radicalidade que começa na duplicidade de Simone, papel de Sol Miranda. Praticante do direito, trabalha na Defensoria Pública, dedicada a questões referentes à mulher. À noite, com sua webcam, ela se dedica a fazer shows de nudez.

A formidável ambiguidade de Simone surge na tela como um desafio. Nenhum homem é um só -todos somos dotados de um duplo socialmente reprovável, que a tecnologia tratou de libertar. No caso, Simone paga suas contas com o dinheiro que arrecada de seus fãs na internet.

A seriedade de Simone no trato das questões com que se defronta na Defensoria choca com a maneira como provoca seus fãs, como se tirasse prazer do fato de excitar suas fantasias. Choca ou se completa? Uma definição da regra 34 que dá nome ao filme seria que qualquer objeto, personagem ou franquia de mídia imaginável tem pornografia associada a ele. A internet é uma extensão do corpo, portanto essa regra valeria para qualquer coisa.

Não que essa atividade noturna seja secreta. Simone reparte suas diversões e mesmo sua vida sexual com os amigos. Mas existe algo vazio nessa sexualidade presencial. É como se a excitação verdadeira viesse da máquina, a câmera com a qual se exibe, do anonimato -que suprime a identidade ou cria uma outra- e da relação indireta que mantém com seus fãs. Relação monetizada, o que duplica o prazer.

Já na Defensoria encontramos, por exemplo, uma mulher que nunca apanhou do marido, mas ele controla todos os seus movimentos. Por que ela demorou tanto tempo a pôr a questão para a Defensoria? Por que ela decide não abrir processo contra o marido? Até que ponto o marido controlador não pretendia, efetivamente, proteger a mulher? Ou um pouco de tudo?

"Regra 34" nos atira num universo de ambiguidades que desmente o trabalho insano da mídia para isolar o bem do mal, o crime da inocência. A regra que designa a ausência de regras que rege o mundo produzido pela internet, põe em questão certezas do saber tradicional.

O próprio corpo se transforma em contato com seu meio de comunicação mais radical. Desse mundo novo, em que a maior ameaça ao sujeito pode vir do sujeito mesmo e de seus desejos, Murat faz um apanhado sereno e seguro em "Regra 34". Ao júri de Locarno, que lhe concedeu o Leopardo de Ouro, não faltou ousadia à altura dos desafios propostos pelo filme.

Ao mesmo tempo, eis um filme que sugere o universo repugnante e francamente depravado pelo qual transitam personalidades públicas que acobertam atividades pouco honrosas, tomando por pretexto a religião e os bons costumes. A pureza pode ser mais suja do que a impureza, lembra "Regra 34".

REGRA 34

Avaliação Muito Bom

Quando Em cartaz na Mostra de SP: Reserva Cultural, sex. (28), às 21h30; Espaço Itaú Frei Caneca, qua. (2/11), às 14h

Classificação 16 anos

Elenco Sol Miranda, Lucas Andrade e Lorena Comparato

Produção Brasil, França, 2022

Direção Julia Murat


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