FOLHAPRESS - "Pacifiction" é um filme estranho. Começa com belas imagens da Polinésia Francesa, entre as quais nos revela a boate Paradise, local de diversão no Taiti. Podemos pensar nas cores e na sensualidade dos quadros de Gauguin. Ali logo chega o diplomata De Roller, representante do governo francês.

As imagens da ilha, dos homens e das mulheres continuam a desfilar. Mas por vezes soam um pouco incômodos. Não existe aquele tom paradisíaco do início de "Tabu", o magnífico filme de Murnau, mas sente-se aquele travo amargo do final, de uma cultura em vias de destruição pela invasão branca.

De Roller tem de tomar conhecimento das coisas no lugar. É um homem não apenas inteligente como hábil, que transita entre nativas sensuais, almirantes, bêbados, franceses, americanos, portugueses, todos um tanto suspeitos, diga-se, mas não se sabe bem do quê.

O que há de mais evidente é certa inquietação na população local em torno da possibilidade de o governo francês reiniciar os testes nucleares submarinos naquela região. Todos sabem os efeitos para a saúde dos testes feitos no passado -o câncer é o mais óbvio e mortal. Alguns estão mais do que inquietos: anunciam a revolta para breve.

O principal líder de uma possível rebelião, aliás, se chama Matahi -que é não só o nome do ator, como o do herói do "Tabu" de Murnau.

De Roller deve auscultar essa população com tato e cuidado. Ora precisará se valer de seu binóculo para ver o que acontece ao longe, ora precisa conversar como quem não quer nada, ora se vê -numa linda sequência, aliás- em meio às ondas enormes da Polinésia, entre barcos e surfistas, fazendo algo que pode ser diversão, mas nunca é inteiramente diversão.

O filme de Albert Serra tem um quê fascinante. Sua construção recusa o andamento linear. Em troca, é como se, junto com De Roller, andasse em círculos.

Trata-se de pacificação. E de pacificação como ato fictício. E mais -seja a pacificação, seja a ficção se dão no Oceano Pacífico.

Poucas vezes o trabalho diplomático foi tratado com tanto respeito. Vemos ali um De Roller tateando no escuro, levantando fatos, tentando compreender o que acontece. Nós seguimos juntos, sem saber exatamente para onde estamos indo. Ora De Roller escuta e pondera, ora fala grosso. Lembra que, afinal, ele é o alto-comissário do governo e que a Polinésia Francesa é, afinal, francesa.

A opção de não seguir um caminho linear deixa a impressão de um filme composto com grande liberdade, permitindo que o acaso interferisse sobre os acontecimentos -o que pode ter acontecido em parte porque o filme foi rodado em plena pandemia de Covid-19.

ontribui para essa impressão a interpretação de Benoît Magimel como De Roller, que traz muitos matizes da atividade diplomática: há um tanto de bon-vivant, outro de espião, um quê de humor comunicativo, ágil, um outro tanto de habilidade para contatar seus esquivos parceiros -que nem sempre sabemos se são parceiros, adversários ou inimigos.

Não é questão de o filme -que Serra afirma ser baseado em memórias de Tarita Térripaia, ex-mulher de Marlon Brando por dez anos- se estender excessivamente, por quase três horas. Acompanhar o caminhar cuidadoso, por um terreno minado, durante tanto tempo não é o problema. Mas talvez seja: qual o sentido disso tudo?

No final, "Pacifiction" lembra um pouco a nascente caudalosa e viva de um grande rio, que nos promete uma água abundante e pura, mas que depois de tudo desemboca em um deserto e parece apenas um filete raquítico.

Pois, ao menos até onde pude entender, o sentido final de "Pacifiction", depois muito flutuar, é um tanto vazio. Do filme resta a luminosa lembrança dos gênios que passaram por lá, Gauguin e Murnau. Não é pouco. Mas é menos do que prometia.

PACIFICTION

Quando Em cartaz na Mostra de SP: Espaço Itaú Augusta, qui. (31), às 20h15

Classificação 16 anos

Elenco Benoît Magimel, Sergi López e Pahoa Mahagafanau

Produção Espanha, França, Alemanha, Portugal, 2022

Direção Albert Serra


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