SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Primeiro Ruth Rocha inclina de leve a cabeça para trás e fecha os olhos, enquanto uma enfermeira faz um cotonete deslizar por cada uma de suas narinas. Depois, ao perceber que a maquiagem ficou levemente borrada, ela abre a bolsa e retoca sem pressa o batom vermelho.

Afinal, aos 91 anos, a autora de clássicos da literatura infantil brasileira volta a viver uma primeira vez. Trancada em casa desde que a pandemia de Covid-19 fez o mundo desmoronar, Rocha nunca havia feito um exame para detectar coronavírus.

Vacinada e mais segura agora para voltar às ruas, o teste inédito ocorreu durante outra estreia em sua vida -as filmagens para a primeira adaptação audiovisual de suas histórias.

Com batom em dia e vestindo uma blusa azul de florzinhas brancas, a escritora caminha por uma praça do Butantã, na zona oeste de São Paulo, onde estão sendo gravadas cenas da série "Marcelo, Marmelo, Martelo", inspirada no best-seller lançado por ela em 1976. A produção que recria com atores um dos principais livros infantis brasileiros ainda não tem data para estrear no Paramount+.

"Tive muitas propostas para transformar minhas obras em filmes e séries, mas nunca tinha deixado porque sempre querem mudar as histórias", conta a autora. "Sei que um roteiro precisa adaptar algumas coisas, mas as pessoas sempre querem mudar tudo, mexer no centro da narrativa. Aí não deixo."

Para levar adiante a adaptação, as roteiristas Alice Gomes e Thamires Gomes e o diretor Eduardo Vaisman, que esteve à frente de episódios de "Detetives do Prédio Azul", tiveram de prometer respeitar o cerne do livro e aprovar com Rocha o desenrolar dos episódios.

Mas a participação da autora também é física. Ela saiu de casa, fez teste de Covid e caprichou na maquiagem para participar de um dos episódios da produção. Como manda o manual do audiovisual contemporâneo, a autora surge como um "Easter egg" -uma piscadinha para fãs atentos, como quando Stan Lee aparece nos longas da Marvel ou Mauricio de Sousa participa das produções da Turma da Mônica.

Aqui, enquanto Marcelo, o famoso personagem que inventa palavras, corre pela praça com seus amigos, Rocha é captada pela câmera sentada num dos bancos e observa a correria das crianças. Do "gravando" ao "corta" do diretor, foram apenas 14 segundos. No episódio que futuramente irá ao ar, certamente será menos tempo ainda.

Mas a escritora afirma ter ficado feliz com seus primeiros 14 segundos de fama audiovisual. "Minhas histórias conversam com crianças há tantas décadas porque tento me preocupar com o moderno, o novo, o presente."

Nos últimos dois anos de pandemia, Rocha aproveitou o tempo em casa para escrever. Terminou "O Grande Livro dos Macacos", um almanaque científico que será publicado pela Moderna, e uma coleção de recontos de fábulas clássicas como "Chapeuzinho Vermelho", "O Coelho e a Tartaruga" e "Cachinhos Dourados", estes para a Global.

Os títulos se somam aos mais de 180 livros publicados em meio século de carreira e aos cerca de 40 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo. "Olha, se eu soubesse a receita do sucesso, teria escrito outros 'Marcelo, Marmelo, Martelo', que vendeu milhões."

Mas ela arrisca uma receita para futuras adaptações para séries e filmes. "Acho que as histórias dos reis dariam bons roteiros." Dessa leva, o conto mais conhecido é "O Reizinho Mandão". Publicado nos anos 1970, sob os coturnos mais pesados da ditadura, o livro gira em torno de um pequeno monarca mimado que manda todo mundo ficar quieto -até que os súditos ficam mudos e desaprendem a falar.

A metáfora sobre os efeitos do autoritarismo é a chave para entender por que Rocha aposta nessa história para uma futura adaptação.

"O Brasil retrocedeu cem anos desde a posse do Bolsonaro", diz ela. Em 2019, em entrevista para este jornal, ainda no primeiro ano de mandato do atual presidente, ela já havia reclamado do ódio que, em suas palavras, regia o país àquela altura.

"De lá para cá, só piorou. Vejo muita gente odienta. E, pior, muita gente odienta armada. Não sou petista, não sou lulista, mas o Lula é uma luzinha no fim do túnel. Não é a luz que eu queria, mas é uma luz. Ele é mil vezes melhor do que o Bolsonaro."

Ruth Rocha diz que neste domingo vai fazer algo que, ao contrário das gravações da série, está longe de ser uma primeira vez --vai sair de casa para votar, apesar de não ser mais obrigada. "Faço questão, nunca perdi uma eleição."