FOLHAPRESS - A China desperta curiosidade, hostilidade, admiração. País de regime unipartidário, é o mais populoso e um dos mais isolados do mundo, cujo PIB deu um foguete nas últimas décadas. Lugar onde foi registrado o primeiro caso de Covid e que adotou uma política de tolerância zero contra a pandemia. Cenário melhor para ambientar um romance de espionagem não pode haver.

"O Criptógrafo", de Mai Jia, é um exemplo de como o gênero evoluiu. Vão longe os tempos do doutor Fu Manchu, gênio do mal e representante do "perigo amarelo" saído da imaginação do escritor Sax Rohmer na primeira metade do século 20. Mudaram os enredos, os personagens, a paisagem exótica. Até a Guerra Fria acabou.

Por sorte a ideia geral não se modifica. É contar uma boa história ao mesmo tempo em que põe em debate questões existenciais, políticas e ideológicas que ajudam a entender as relações internacionais. Sua matéria-prima é inesgotável -a corrupção nas altas esferas do poder, que move o interesse de autores e leitores.

A tarefa hoje está nas mãos de um chinês, que assume o lugar antes ocupado predominantemente por escritores de língua inglesa -Ian Fleming, Graham Greene, John Le Carré, todos de alguma maneira surgidos no encalço de Joseph Conrad, que em 1907 publicou "O Agente Secreto".

Escritor de maior sucesso de vendas na China contemporânea, Mai Jia -pseudônimo do ex-militar Jiang Benhu, nascido em 1964- elegeu um protagonista que nada tem a ver com o bonitão James Bond ou o gordinho George Smiley, agente do M16 criado por Le Carré. Não deixa de ser um espião, mas um espião, digamos, cujo disfarce é natural.

O gênio da matemática Rong Jinzhen tem uma cabeça enorme, desproporcional, disforme, herdada do pai, um marginal conhecido como Cabeção do Demo. É órfão e sempre olhado com desconfiança, pois foi criado por um estrangeiro.

Jinzhen é um anti-herói que sofre de depressão, um bastardo que na infância ganhou o apelido de "Coisinha", um decifrador não só do código Purple como também de sonhos. O autor levou a sério a dica segundo a qual personagens normais não funcionam em literatura.

Para dar conta de uma figura tão estranha, o relato foge aos padrões esquemáticos do thriller. A primeira parte, na qual se recorda a história da família Rong, marcada por tragédias e misticismo, é quase um relatório, escrito em linguagem de burocrata. Aqui e ali, no entanto, irrompem toques cômicos, absurdos, mágicos. Não por acaso um dos autores preferidos de Mai Jia é Gabriel García Márquez.

Quando a ação avança -Jinzhen é recrutado para trabalhar na unidade 701, agência governamental dedicada à criptografia, reencontra um antigo professor e se envolve numa trama de traição-, a estrutura narrativa ganha adrenalina e camadas de desconstrução. São depoimentos, diários, entrevistas, cartas, transcrições de fórmulas matemáticas e citações de almanaque. Almanaque de sabedoria chinesa, naturalmente.

Mescla de relato histórico com metaficção, o novo romance de espionagem deixa soltas, de propósito, as pontas do enredo. Quase no fim do livro, escreve o autor em uma das constantes intervenções e digressões, "voltemos à narrativa principal, a história de Rong Jinzhen, que ainda não acabou -aliás, esse foi só o começo".

Obra de estreia, "O Criptógrafo" foi recusado 17 vezes por diferentes editoras. Paciente, Mai Jia levou 11 anos para terminar o livro, que acabou traduzido para 33 idiomas. O leitor também deve ter um pouco de paciência, mas, no fim, a aventura vale a pena.

O CRIPTÓGRAFO

Avaliação Bom

Preço R$ 99,90 (336 págs.); R$ 44,90 (ebook)

Editora Companhia das Letras

Tradutor Amilton Reis e Sun Lidong


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