MARRAKECH, MARROCOS (FOLHAPRESS) - Serpenteando pelas areias douradas e as dunas que sobem e descem, a câmera de "Aladdin" dava forma ao local "místico" e "caótico" sobre o qual a canção "Noite da Arábia" falava sem muita propriedade, naquele que é possivelmente um dos relatos mais conhecidos do mundo árabe no cinema ocidental.
Mas bastam alguns minutos em qualquer país da região para perceber quão exotizado é aquele retrato feito por Hollywood --por mais que as especiarias de fato invadam as narinas em muitas praças e mercados, como a letra diz. Na verdade, a indústria local tem florescido nas últimas duas décadas e, no caminho, tentado justamente oferecer um novo ponto de vista.
Não necessariamente essa reinterpretação é precisa. Há quem queira mostrar o mundo de língua árabe tal como é, com os problemas comuns a qualquer sociedade, mas, ao mesmo tempo, países como Marrocos e Qatar, sede da Copa do Mundo, injetam dinheiro numa fantasia que apresenta uma realidade manipulada.
Daí nascem contradições, como o discurso de que a população LGBTQIA+ é bem-vinda num campeonato futebolístico que não permite o uso de braçadeiras com os dizeres "one love". Ou mesmo o caso do Festival de Cinema de Marrakech, que na semana passada exibiu dois filmes sobre relacionamentos gays num país que tem leis contra a homossexualidade --punível com multas e até três anos de prisão.
O evento marroquino, de 20 anos, se junta ao mais tradicional Festival de Cinema do Cairo, realizado desde 1976, e ao Red Sea, fundado em 2019 na Arábia Saudita. Além deles, Amã, na Jordânia, Doha, no Qatar, e Abu Dhabi e Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, estão entre as cidades que passaram a receber festivais de grande porte neste milênio.
Em Marrakech, a sensação é de se estar pisando em Cannes, ignorada a paisagem árida que toma o lugar das ondas azuladas. Tudo é grandioso e glamoroso, como na Riviera.
Nesta última edição, o festival marroquino recebeu estrelas de fazer inveja a qualquer par --como Tilda Swinton e Isabelle Huppert--, teve um júri presidido por Paolo Sorrentino e estendeu o tapete vermelho para que as cores dos vestidos estrangeiros se embaralhassem à costura caprichada dos cafetãs locais.
Francês e inglês se alternavam nas rodas de conversa, por mais que a população marroquina tenha participação em peso --a praça central, a Jemaa el-Fna, chegou a receber uma enorme tela, reunindo túnicas em meio às serpentes que relutavam em dançar ao som dos flautistas daquela Times Square do Magreb, mais turística que autêntica.
O conceito de um festival de cinema francês fora da França era debatido entre os jornalistas. Até a equipe, subordinada às menções intermináveis ao rei Mohammed 6º, fundador e patrocinador do evento e visto como responsável pela modernização do Marrocos, abriga um número significativo de estrangeiros.
Um deles é Thibaut Bracq, francês que comanda o Atlas Ateliers, braço responsável por palestras e oficinas que, nos outros dias do ano, se dedica ao aperfeiçoamento de mão de obra, com bolsas que financiam cineastas da África.
"O cinema no mundo árabe sempre existiu, mas há um interesse renovado. Para além de novos cineastas, há gente disposta a investir. Em festivais como este, por mais que haja financiamento da monarquia, temos um espaço livre, não há intervenção do governo", afirma ele, antes de dizer que, por ser estrangeiro, não falaria sobre as implicações políticas de promover um evento tão internacional.
Quem também fugiu do assunto foram representantes do Festival Red Sea e da Royal Commission for Alula, organização patrocinada pela realeza saudita para a promoção do cinema. Depois de concordarem em dar entrevistas por email, eles passaram três semanas em silêncio. Retornaram, enfim, com uma lista de perguntas editada, mas ainda assim não respondida até a publicação desta reportagem.
Vale dizer que algumas nações árabes nem tinham salas de cinema até a década passada. Na Arábia Saudita, elas eram proibidas até 2018, quando foram inauguradas redes modernas, hoje responsáveis por engordar as bilheterias de Hollywood num ritmo de crescimento invejável.
Projeções apontam que, até 2030, Arábia Saudita e Emirados Árabes devem assumir posições na lista dos dez maiores mercados cinematográficos. Ironicamente, é a região, embriagada pelo senso de novidade, que pode ajudar a reerguer as bilheterias mundiais.
"A retomada das salas de cinema faz parte de um movimento de reformas sociais culturais, que não deve ser confundido com uma reforma política", afirma Geraldo Adriano Campos, diretor do Centro Internacional de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade Federal de Sergipe.
"A abertura de cinemas é uma ação política, mas com desdobramento econômico significativo, particularmente por ter sido anunciada como uma forma de diversificação de áreas de investimentos para superar a dependência do petróleo. Por isso, a indústria cinematográfica é um bom campo para perceber como as dinâmicas do capitalismo contemporâneo atravessam as diferenças culturais."
Também é importante ressaltar o papel diplomático dessa primavera cinematográfica entre os árabes. Basta olhar para a Coreia do Sul, que adotou estratégia comum aos Estados Unidos, investindo em cultura para se projetar internacionalmente, moldando sua imagem e influência no exterior. É o velho soft power.
Nem sempre, no entanto, a arte joga a favor das autoridades. Campos afirma que a produção local dialoga com as transformações políticas de cada sociedade e que "a cinematografia árabe contemporânea é implacável em sua crítica política e social".
Vemos isso com Mohamed Diab, que peita a elite do Egito ao dar espaço a músicas proibidas e "do povão"; Nadine Labaki, que precisa de sutileza para mostrar as mazelas sociais do Líbano; e Mehdi Ben Attia, que se diz "low profile" ao filmar relacionamentos gays na Tunísia. Ampliando o campo de visão para todo o mundo islâmico, o Irã é mestre em pôr e tirar cineastas da cadeia, como Jafar Panahi.
Nascido na Suécia, Tarik Saleh, que exibiu em Cannes e Marrakech o thriller "Boy from Heaven", carregado de críticas à corrupção e ao totalitarismo, é filho de egípcios e não pôde filmar a trama no país das pirâmides.
"As proibições locais são uma questão política, e não religiosa, ao contrário do que pensam. E este filme nem é tão controverso quanto pode parecer, mas é simplesmente impossível fazer algo com carga política em países como o Egito", afirmou Saleh, na França.
Ele fez da Turquia o cenário para seu Egito e contratou atores expatriados ou estrangeiros, que não sofreriam represálias ao voltar para casa.
Quem faz coro ao discurso de que é preciso cautela é Labaki, que integrou o júri do Festival de Marrakech deste ano e impregna seus filmes de críticas sociais. Foi assim em "E Agora, Aonde Vamos?", sobre tensões religiosas locais, e "Cafarnaum", indicado ao Oscar e premiado em Cannes.
"A arte não é feita para agradar a todos. Ela tem de provocar. Há uma onda perigosa que faz muitos artistas recorrerem à autocensura. Por um lado, há proibições explícitas, mas por outro há a cultura do cancelamento. A partir daí vemos contradições, como um filme gay exibido em Marrakech, mas que provavelmente vai ser recebido localmente com ódio. Precisamos questionar esses filtros", afirma.
Única produção marroquina na competição principal do Festival de Marrakech, "Túnica Turquesa" foi um dos filmes que Labaki viu na semana passada. A trama acompanha um costureiro que, sob os olhares atentos e permissivos da mulher, vive sua homossexualidade em casas de banho.
Foi, ao contrário da fala de Labaki, um dos longas mais aplaudidos do evento, em sessões repletas de estrangeiros, claro, mas que tinham um público marroquino expressivo, notavelmente jovem, que levantou para gritar "bravo" com entusiasmo incomparável.
Há mudanças acontecendo, mas a passos lentos, até porque este é um movimento recente. Além disso, o crescimento da indústria local precisou ser acompanhado por um aumento no interesse por narrativas que destoem das americanas e europeias.
O Oscar, por exemplo, é um indicativo de como investimento local e interesse externo caminham de mãos dadas. Nas últimas duas décadas, os países árabes emplacaram nove filmes na disputa pela estatueta internacional --antes da virada do milênio, havia apenas três indicações espaçadas, todas para a Argélia.
O processo é um tanto vagaroso por causa das suas contradições. Se por um lado há interesse das autoridades em investir na indústria cinematográfica, por outro artistas esbarram em obstáculos atrelados ao conservadorismo e à censura. Mesmo estrangeiros não estão imunes. São frequentes os casos de filmes que, ao tentar chegar à região, são banidos ou picotados.
Aconteceu neste mês com "Pantera Negra: Wakanda para Sempre", que teve uma cena lésbica cortada no Kuwait, e também com ao menos outra dezena de filmes ao longo de 2022, por questões LGBTQIA+.
Geraldo Adriano Campos ressalta que a censura, no entanto, é comum a vários países, em diferentes configurações. No Brasil, por exemplo, o governo Bolsonaro tentou mexer em editais e mecanismos da Ancine para afugentar projetos sensíveis à direita.
É preciso abandonar preconceitos e entender a fundo a dinâmica de cada um desses países, defende. E ter uma visão crítica de nossa própria cultura, como Labaki sugeriu ao contrapor o cancelamento e o politicamente correto à censura institucionalizada.
Afinal, os Estados Unidos têm entre 10% e 15% de filmes dirigidos por mulheres ao ano. No Marrocos, no Líbano e na Tunísia, o número chega a 26%, implodindo preconceitos sobre o papel feminino na região.
O jornalista viajou a convite do Festival Internacional de Cinema de Marrakech.
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