SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Ao se sentar no sofá da pousada e ouvir que o nome de seu livro em português ficou "Escute as Feras", a francesa Nastassja Martin comenta que não é exatamente isso que o título original quer dizer. Mas reconhece que era uma tradução difícil.
Em francês, a obra se chama "Croire aux Fauves". Já fica evidente a mudança do verbo "acreditar" para "escutar", mas o substantivo também não significa só "fera". Passou a simbolizar uma cor amarronzada, depois um cheiro que remete a suor animal. Então, nomeou um movimento artístico, o fauvismo.
"Minha ideia era usar uma palavra que explodiu e se reconstruiu diversas vezes ao longo dos anos, porque meu objetivo nesse livro é falar sobre metamorfose", afirma ela durante uma conversa em Paraty, no litoral fluminense, onde veio participar de uma mesa neste sábado na Flip.
No começo, ela diz, o editor queria que ela colocasse a palavra "urso" no título. "Imagina isso", diz ela com galhofa. Como muitos brasileiros sabem desde que o livro virou um pequeno fenômeno de vendas --a 34 já imprimiu quatro edições em pouco mais de um ano--, "Escute as Feras" conta de quando o rosto de Martin foi estraçalhado por um animal dessa espécie.
Mas isso é uma descrição redutora de uma obra de sofisticação insuspeita. Sim, estão ali as descrições gráficas da experiência aterradora pela qual a autora de 36 anos passou em agosto de 2015 --como a de ouvir o som de seu maxilar sendo mastigado pela fera. Mas o livro passa mais por um experimento filosófico, uma investigação existencial que qualquer outra coisa.
Boa parte da obra foi escrita a quente, ainda durante sua estada em hospitais aguardando operações que reconstruiriam seu rosto --hoje, a autora tem apenas cicatrizes discretas na região inferior da bochecha, que você só nota se souber o que procurar.
Mas a mudança que Martin descreve ao longo do livro é muito menos estética que interior. Naquele dia, escreve ela, "o acontecimento não é: um urso ataca uma antropóloga francesa em algum lugar nas montanhas de Kamchátka", na Sibéria. "O acontecimento é: um urso e uma mulher se encontram e as fronteiras entre os mundos implodem."
A autora passa a elaborar uma nova existência a partir da "reviravolta de sua vida". Sente que ela e o predador que a desfigurou se fundiram numa entidade recém-criada, e o livro soa como uma tentativa menos de recriar o que aconteceu do que elaborar quem é essa nova pessoa.
Por isso tanto de suas páginas são escritas num tom desenfreado de febre da selva. "Vivemos conscientemente na ilusão da eternidade, porque sabemos muito bem que, num instante, tudo aquilo que desde sempre conhecemos vai se desmanchar, se recompor, aqui ou ali, vai se metamorfosear e se tornar esse algo de inapreensível do qual não poderemos assumir mais nada."
Em diversos momentos da narrativa, Martin afirma temer por sua saúde mental. "Esse medo de ficar maluco ao encontrar um animal é muito frequente na comunidade em que trabalho", afirma ela. "Quando você vai caçar, tem que seduzir o animal até você para matá-lo. Tem que se identificar com ele, apagar as fronteiras entre você e ele. O problema é que, nesse processo, você pode se perder."
São comuns as histórias de caçadores que enlouquecem após se perderem na mente do animal, diz ela. O caso dela foi ainda mais extremo, e o livro pode ser lido como seu esboço de novas fronteiras para uma personalidade fraturada junto com o crânio.
A escritora diz que a editora que lançou seus trabalhos de antropologia se ofereceu para publicar "Escute as Feras". Ela recusou e foi para uma editora que chama de "mais literária". "Precisava fazer isso fora das convenções da escrita acadêmica. Queria escrever de forma onírica, que fosse sensível e real."
E o próprio processo literário mudou sua perspectiva. "Percebi o quando amei escrever desse jeito. Pessoas ficaram tocadas pela história. Recebi mensagens de gente internada em hospitais que se sentiu acompanhada pelo livro, em seu estado próprio de metamorfose. Percebi como as palavras podem ser poderosas."
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