PARATY, RJ (FOLHAPRESS) - A mesa mais aguardada da Flip deste ano ficou à altura do que esperava a horda de admiradores de Annie Ernaux que lotaram o auditório da Matriz e a praça do centro histórico de Paraty neste sábado, 26.
A mesa da escritora terminou em uma onda de aplausos e lágrimas quando ela respondeu sobre a reação negativa da direita francesa a sua premiação com o Nobel de Literatura, em outubro.
"São pessoas que não veem o que escrevo e a maneira como escrevo como legítimas. Da minha parte, é bom ser a primeira mulher francesa a ganhar esse prêmio --e com uma escrita que possa ser fonte de liberdade."
O aspecto libertário da literatura de Ernaux foi o ponto fulcral da discussão que ela teve com a brasileira Veronica Stigger, sob mediação da crítica Rita Palmeira.
O outro momento que mais arrebatou a plateia --a ponto de os urros e palmas da praça serem audíveis de dentro do auditório-- foi quando ela discutiu a maneira como expressa o desejo em "O Acontecimento", que relata o aborto ilegal que praticou quando era universitária, e "O Jovem", sobre uma paixão por um homem 30 anos mais novo que ela.
"Não é justo ligar o aborto a uma questão de desejo. Eu só queria ter uma vida livre", afirmou.
Stigger apontou que "O Acontecimento" é seu livro favorito de Ernaux, por representar com acuidade "a violência que a mulher sofre no corpo por causa da não decisão que tem sobre ele".
Já "O Jovem", disse a francesa, é uma exploração no mergulho que ela deu em outro modo de vida ao se envolver com um homem de 20 e poucos anos quando já estava na casa dos 50.
"Ser iniciada nessa cultura mais nova, para uma mulher de 50 anos, leva a uma memória, a um retorno no tempo muito particular. Eu e ele não tínhamos nem a mesma memória do passado nem a mesma esperança no futuro."
O que une Ernaux a Stigger, sua companheira de mesa, é a transformação de si mesmas em personagens literários, ainda que as duas façam isso de modos muito distintos.
A brasileira comentou, por exemplo, de um conto que simula uma palestra sobre um livro escrito por Veronica Stigger, que na narrativa é uma escritora desaparecida há meses.
A mesa funcionou como uma boa introdução à obra de duas escritoras de alta sofisticação literária. Por exemplo, ao conceito sociológico de "trânsfuga de classe", muito usado para definir a posição social expressa por Ernaux em sua obra.
"Quer dizer que eu tinha consciência de pertencer a um lugar que tinha códigos, linguagens, visão de mundo diferente do universo em que fui entrar depois como estudante e professora", explicou ela, sublinhando que sua arte passa longe da sociologia.
"A literatura se encarna, acontece através de uma pessoa, de um olhar. Em 'O Lugar', evoquei tudo isso pela figura de meu pai."
Ernaux lembrou ainda outro momento determinante de sua vida em que se desatou de amarras --quando publicou seu primeiro livro, "Armoires Vides", que foi escrito escondido do marido e da família nos anos 1970. A obra é um romance ficcional protagonizado por uma mulher que aborta.
"O livro era autobiográfico, era aterrorizante, mas o assumi completamente. Falei, 'o livro está aqui, é uma coisa do mundo, e eu estou ao fundo'", relatou.
"Fiz bem em escrever em segredo, fui totalmente livre, segui meu desejo de ir até o fim e não esconder nada. É um livro de ruptura com a vida que tinha em direção a outra vida."
O clima no ar era tanto de celebração da trajetória de Ernaux quanto de inspiração para escritoras do futuro --a plateia aplaudiu quando a mediadora comemorou a profusão de mulheres nas mesas e na curadoria da Flip, algo impensável quando o festival começou, há 20 anos.
A Flip segue até este domingo, 29, e ainda traz mesas de destaque com escritores como Saidiya Hartman, Lázaro Ramos e Teresa Cárdenas.
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