PARATY, RJ (FOLHAPRESS) - Quando a escritora americana Saidiya Hartman esteve pela primeira vez no Brasil, nos anos 1990, para uma série de palestras em universidades do país, ela ficou "muito impressionada com a ausência de pessoas negras".

"A ideia de que as universidades brasileiras estão sendo transformadas radicalmente com as cotas raciais me inspira muito", disse a professora da Universidade Columbia, em Nova York, durante a mesa "Entrar no Bosque de Luz", na noite deste sábado (26) na Flip.

"Esse foi um processo que se deu também nos Estados Unidos, mas é alvo de disputas na Suprema Corte", afirma ela, sobre retrocessos nas políticas afirmativas americanas.

"As situações do Brasil e dos Estados Unidos são distintas, mas há uma ressonância. Ainda mais por causa dos nossos recentes presidentes, a quem não vamos nomear", disse. "Não existe progresso inevitável nesse campo. Temos de pressionar para que a mudança continue a acontecer."

Hartman, autora de "Perda da Mãe" e "Vidas Rebeldes, Belos Experimentos", ambos lançados no Brasil pela editora Fósforo, participou do festival em diálogo com a antropóloga argentina Rita Segato e com o crítico literário brasileiro Luiz Maurício Azevedo, com mediação da filósofa e expoente do feminismo negro Djamila Ribeiro, colunista da Folha de S.Paulo.

Segato, autora de "Cenas de um Pensamento Incômodo" e "Crítica da Colonialidade em Oito Ensaios", da Bazar do Tempo, e reconhecida internacionalmente por seus estudos do feminismo e da violência contra a mulher, contou a história da primeira experiência de cotas no Brasil, no âmbito da Universidade de Brasília, onde lecionou por 25 anos.

A argentina foi coautora da primeira proposta de cotas para estudantes negros e indígenas na educação superior depois que um aluno negro da universidade sofreu um caso de "discriminação brutal e reprovação de provas" injustamente e foi sumariamente reprovado.

"Tem quem pense que Lula criou cotas numa canetada. Tem quem pense que foi a Universidade Estadual do Rio de Janeiro quem criou as cotas, porque foi a primeira que as aplicou. Mas os debates na UnB começaram em 1998. E sofremos uma perseguição terrível por termos colocado o tema em pauta no Supremo Tribunal Federal, que depois declarou, finalmente, que as cotas eram constitucionais", lembra ela. "Foi um longo processo que o Brasil desconhece. É um processo que foi silenciado."

A ideia de silenciamento e de invisibilidade atravessaram as conversas da mesa sobre raça e gênero, cujo título remete à iluminação daquilo que não se consegue ver.

"O bosque da luz seria aquilo que consegue nos iluminar e mostrar uma verdade oculta, contra a qual, sem essa luz, não se consegue lugar. Algo que me remete ao espelho da rainha má da história de Branca de Neve, que traz a ela verdades que doem", comparou Segato. "Por exemplo, o Brasil é racista? Para um país que durante muito tempo se pensou cordial, é difícil enxergar essa verdade."

Como crítico literário, Azevedo pontuou de que maneira o racismo pode arruinar o próprio exercício dessa crítica em relação a autores negros. "Como fazer crítica literária de objetos produzidos por pessoas que o mundo social já destruiu?", provoca. "É mais fácil dizer sobre a incompetência branca do que negra. Enquanto a literatura negra não é reconhecida em suas qualidades, a gente não pode perder tempo reconhecendo os maus autores negros."

Hartman falou sobre sua experiência no processo do livro "Perder a Mãe", em que elabora os sentimentos contraditórios de se deparar com lacunas documentais e a sensação de não pertencimento numa viagem para conhecer suas raízes ancestrais em Gana, na África.

"Eu amo contar histórias impossíveis. E, quando comecei a escrever o livro, eu buscava qualquer evidência sobre a minha história", afirma. "Não encontrar isso me transformou como pensadora e como escritora. Mudou meu processo literário, e eu aprendi a escrever com o coração."

A pesquisadora avalia que a perda dos registros de pessoas "escravizadas, subalternas e oprimidas tinha a intenção de fazer com que a nossa história fosse impossível de contar". Sua opção foi pela fabulação crítica dessas histórias a partir de pequenas pistas que conseguiu obter na exígua documentação histórica disponível.

"Eu usei da especulação e da imaginação para conseguir contar essas histórias impossíveis. E fiz isso através de uma fabulação capaz de esticar os limites dos documentos existentes."

Segundo Hartman, lidar com as lacunas nas histórias da diáspora africana exige "uma revolução epistemológica, ou seja, uma transformação radical do que sabemos e de como validar o que sabemos".

"As evidências são uma parte da história e de contar a história. Outra parte são os limites da própria imaginação. Não podemos ficar fixados nas evidências e recorrer a dados, práticas culturais e pessoas com cultura material. Temos de nos dedicar a recontar essas histórias com aquilo que temos disponível, em vez de pensarmos na falta de certos tipos de artigos, como se isso fosse um grande impasse. Podemos superar e atravessar esse obstáculo."


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