WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) - Um dia, enquanto decidia o tema de sua pesquisa de doutorado, a jornalista Christina Stephano de Queiroz ouviu de uma professora "dá uma olhadinha neste autor aqui". Era o poeta brasileiro Jamil Almansur Haddad, um filho de libaneses nascido em São Paulo em 1914 e morto na mesma cidade em 1988.

Haddad tem todas as credenciais necessárias para habitar o cânone literário brasileiro. Em paralelo a seu trabalho como médico, ele publicou sete livros de poesia, introduziu a obra do Marquês de Sade no país, traduziu as "Flores do Mal" de Charles Baudelaire para o português e assinou estudos críticos sobre o Padre Antônio Vieira. Por algum motivo, porém, seu nome segue relativamente desconhecido.

Queiroz tomou como ponto de partida essa discrepância quase dialética entre uma obra importante e a carência de estudos sobre ela. Dedicou seu doutorado a pesquisar o poeta. Defendeu o trabalho há cinco anos, com que venceu o Prêmio Tese Destaque na Universidade de São Paulo. O texto virou o livro "A Lua do Oriente e Outras Luas", lançado pela Ateliê Editorial.

Um dos principais argumentos de Queiroz é de que a crítica literária penou para classificar a produção poética de Haddad. Por muito tempo, interpretaram ele como um poeta sem lugar. Não era libanês, porque tinha nascido no Brasil, mas tampouco era tido como brasileiro.

Escrevia com métrica rigorosa e conservadora, ao mesmo tempo em que abordava temas às vezes eróticos. A recusa de Haddad de se encaixar nas lentes da crítica acabou deixando sua obra fora de foco.

"No começo, eu mesma comprei essa ideia de que ele era um poeta fora de lugar", Queiroz afirma. "Essa discussão sobre o pertencimento dele sempre foi muito acalorada, com visões antagônicas sobre essa ambivalência entre ele ser oriental e ocidental, passadista e pornográfico."

Enquanto avançava na pesquisa, porém, Queiroz se deu conta de que Haddad tem sim um lugar --ele vive na fronteira entre as coisas. "Ele não é um imigrante, mas a poesia dele tem uma identidade diaspórica. Está no Oriente e no Ocidente, no profano e no sagrado. É o lugar de onde escreve."

"A Lua do Oriente e Outras Luas", escrito no formato de um ensaio biográfico, bebe de um impressionante manancial de fontes primárias. Queiroz leu jornais da época, coletou depoimentos orais e pesquisou os arquivos da ditadura, que vigiou o poeta. Ela teve acesso também ao espólio de Haddad --que havia sido conservado por Fernanda Auada Moukdessi, uma sobrinha-neta do autor.

O espólio incluía coisas como manuscritos, recortes de jornais, fotografias, modelos de óculos, notas de dólar, recibos de pagamento, cartas em árabe e cartões de visita de seu trabalho como médico. Queiroz faz questão de citar Moukdessi por nome e elogiar "o primor" de seu trabalho de proteção da herança de Haddad. Foi entre os papéis soltos do espólio do poeta, afinal, que Queiroz encontrou textos inéditos, como os "Sonetos do Artífice", que ela incluiu em "A Lua do Oriente".

Marcados por uma curiosa mistura entre erotismo e vocabulário médico, os "Sonetos do Artífice" incluem versos como "mora o destino nos gânglios linfáticos", "na carne o bisturi é amargo arado" e "os teus seios têm riscos de navalhas e as chagas brilham por detrás das gazes".

A riqueza documental é um dos diferenciais do trabalho de Queiroz. Os estudos sobre imigrantes árabes e seus descendentes no Brasil costumam esbarrar no silêncio dos arquivos, que pouco ou nada dizem sobre as dezenas de milhares de sírios e libaneses que imigraram para o país desde o final do século 19.

"A Lua do Oriente" expande, e bastante, o que pesquisadores sabiam sobre essa figura relevante da literatura brasileira e da história da comunidade sírio-libanesa no Brasil.

O livro de Queiroz é, de certo modo, um convite para que outros pesquisadores escavem as histórias dos imigrantes sírios e libaneses e seus descendentes que escreveram em árabe e português no Brasil da primeira metade do século 20. As suas luas por ora seguem minguantes.

A LUA DO ORIENTE E OUTRAS LUAS

Preço: R$ 78 (380 págs.)

Autor: Christina Stephano de Queiroz

Editora: Ateliê Editorial